Como gostamos de botar a culpa
dos nossos males na vida moderna. Dificuldade de se concentrar? Culpa da
internet. Menos saídas ao vivo com os amigos? São as redes sociais. Falta de
horas de sono? Luz elétrica, internet, cafeína, televisão.
Não é possível voltar no tempo
para examinar se realmente dormimos menos hoje do que na era pré-industrial
–ou, melhor ainda, nos tempos pré-civilização de nossos primeiros antepassados
humanos. Mas dá para chegar perto: existem várias sociedades pré-industriais
que supostamente mantêm hábitos de vida intocados por todos aqueles supostos
demônios da vida urbana moderna.
Jerome Siegel, especialista em
sono na Universidade da California em Los Angeles, em parceria com
antropólogos, resolveu estudar os hábitos de sono de três dessas sociedades: os
Hadza, na Tanzânia, e os San, do Kalahari, ambos ainda hoje caçadores-coletores
como nossos ancestrais; e os Tsimane, na distante Bolívia,
caçadores-horticultores (não nômades). Nada elétrico é usado nessas sociedades,
nem sistemas de climatização: todos vivem expostos à variação natural de
temperatura.
Para surpresa dos urbanos,
Siegel e seu time descobriram que todas essas três sociedades dormem tanto
quanto nós, cercados de tecnologias modernas nas cidades: passam de 6,9 a 8,5
horas deitados à noite, dormindo de fato entre 5,7 e 7,1 horas.
E dormem aproximadamente uma
hora a mais no inverno. Essas sociedades vivem expostas ao clima, e tanto os
San quanto os Hadza, na Tanzânia, vivem bem ao sul do Equador, com invernos
mais frios –época do ano em que dormem cerca de 7 horas, contra 6 no verão. A
maior diferença está na hora em que adormecem, cerca de uma hora mais cedo no
inverno. Nas três sociedades pré-industriais, aliás, não se dorme assim que o
sol se põe, e sim umas 3 horas depois, lá pelas 10 da noite. Mas acorda-se,
isso sim, perto do nascer do sol.
O que nos faz dormir mais cedo
no inverno? Provavelmente, a temperatura ambiente mais baixa. Esta é talvez a
descoberta mais importante do estudo: o horário de sono natural coincide com a
variação de temperatura ambiente, adormecendo-se quando a noite esfria, e
acordando-se quando a temperatura chega ao mínimo, perto do sol nascer.
É um grande argumento a favor
da tecnologia: o ar-condicionado deve ajudar a cair no sono. E se for possível
programá-lo para deixar o quarto cada vez mais frio ao longo da noite, melhor
ainda
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da
UFRJ, autora do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor"
(ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com