A privacidade foi extinta e hoje é um zumbi, diz acadêmica
Shoshana
Zuboff, autora de "A Era do Capitalismo de Vigilância", exige o
direito de proteção contra o "roubo" de dados pelas big techs.
Estes são tempos de incerteza para o Vale do
Silício. As empresas de tecnologia estão demitindo funcionários que contrataram na
pandemia.
O Twitter, sob o comando de Elon Musk, afastou os anunciantes. A Apple,
autoproclamada defensora da privacidade, quer reduzir o alcance do Google. É
possível imaginar que o faroeste digital se tornará mais civilizado.
No entanto, para os críticos das big techs, há
pouco alívio. Shoshana Zuboff, professora emérita da Escola de Administração de
Harvard, publicou "A era do capitalismo de vigilância"
em 2019 –uma explosão sobre como as empresas de tecnologia
ganharam bilhões de dólares sugando dados privados.
"Pensávamos estar
pesquisando no Google, mas era o Google que estava nos pesquisando",
resumiu ela.
Hoje, Zuboff está frustrada porque os esforços para
limitar as empresas de tecnologia são tão fragmentados.
"Temos estudiosos,
pesquisadores, defensores fantásticos que se concentram na privacidade, outros
estão focados na desinformação, outros na relação com a democracia", disse
ela, quando nos encontramos em Londres.
Essa "balcanização" reduz a
capacidade de identificar a "fonte real do dano": os dados das
pessoas são tratados como um recurso sem custo, assim como foram as florestas e
outras partes da natureza em séculos passados.
Zuboff
cita dados de que, nos Estados Unidos, que não têm uma lei federal sobre
privacidade, as pessoas têm sua localização exposta 747 vezes por dia.
Na União Europeia, que ela diz ter a "melhor
regulamentação", são 376. "É melhor, mas não é nem de
longe melhor o suficiente."
Mark Zuckerberg uma vez prometeu que um modelo
preditivo diria a você, ao chegar a uma cidade estranha, a que bar devia ir, e
um barman já teria preparado sua bebida favorita.
Esse sonho desvaneceu apenas
com base na praticidade, não no princípio.
Em
um artigo publicado em novembro, Zuboff argumentou que a Apple e o Google
tinham superado as autoridades de saúde europeias na tecnologia de rastreamento
da Covid.
"É possível ter capitalismo de vigilância e é possível ter
democracia. Não é possível ter os dois", escreveu ela.
A Apple criou a
ilusão de agir como Robin Hood, quando apenas a supervisão democrática poderia
proteger os direitos individuais.
Ela
vê suas ações contra o Google simplesmente como uma "expansão" do
capitalismo de vigilância. As promessas de Tim Cook de proteger a privacidade
podem ser revogadas a qualquer momento: "Os usuários não têm voz".
A
vigilância tecnológica é importante, argumenta Zuboff, porque nos rouba a
"intimidade que sustenta a vida".
Os indivíduos também não podem
realisticamente optar por manter sua privacidade. Precisamos é de um direito ao
santuário.
No
ano passado, Bruxelas aprovou a Lei de Serviços Digitais e a Lei de Mercados
Digitais, sua legislação de tecnologia mais abrangente até o momento.
O
Parlamento do Reino Unido está atualmente debatendo o projeto de lei de
segurança online. Zuboff quer que eles sejam trampolins.
Em 1988, ela publicou "In the Age of the Smart
Machine" [Na era da máquina inteligente], que afirmava que os computadores
modificariam as empresas de uma forma que as tecnologias anteriores não haviam
feito.
Mais tarde, ela dirigiu o Odyssey, programa educacional da Escola de
Administração de Harvard para ajudar pessoas de sucesso a decidir como passar a
parte futura de suas vidas.
Sua obra sobre o capitalismo de vigilância foi sua própria
florada na carreira tardia.
Foi publicada quando ela tinha 67 anos, depois que
um raio incendiou a casa de sua família no Maine e após a morte inesperada de
seu marido e coautor, o empresário Jim Maxmin.
Zuboff afirma que as empresas de tecnologia sabiam que o público
nunca aprovaria as coletas de dados.
"Desde o início elas foram entendidas
como coisas que tinham que ser secretas, tinham que ser camufladas dos
usuários, para não provocar resistência.
" Ela cita um recente executivo do
Google dizendo: "Não vai assustar as pessoas saber o quanto estamos
prestando atenção?"
Hoje, as empresas de tecnologia "estão ficando muito mais
relutantes em patentear suas descobertas, porque não querem que o público saiba
exatamente o que estão fazendo.
Na maioria dos casos, eles não estão mais
disponibilizando seus dados pessoais aos pesquisadores".
Assim, Zuboff vê a necessidade de uma expedição de pesca
regulatória. As leis de tecnologia da União Europeia criarão "novos
quadros de pessoas com novas combinações de habilidades que irão para dentro
das corporações.
A missão delas será ‘levantar o capô’ para entender o que
realmente está acontecendo. Um dos grandes problemas que temos é que a maioria
das informações que saem das empresas são intencionalmente projetadas para ser
enganosas.
A distorção de informações é uma forma de arte retórica genuinamente
praticada por essas empresas".
Zuboff raramente usa respostas curtas ou terminologia simples.
No entanto, ela é direta sobre a moderação de conteúdo –as tentativas das
empresas de remover conteúdo nocivo– que ela descreve como "areia
movediça ... uma proposta totalmente perdedora, destinada na verdade a nos
manter ocupados o maior tempo possível, para que elas possam continuar se
safando com o que realmente estão fazendo".
Ela é mais positiva sobre o design adequado à idade, em que as
plataformas são projetadas para minimizar os danos às crianças e coletar menos
dados delas.
O Reino Unido foi pioneiro no design adequado à idade, mas após o
Brexit perderá o "poder mais musculoso" de Bruxelas contra o
capitalismo de vigilância, diz Zuboff.
Ela também vê "um movimento para
enfraquecer e desnaturalizar o regime de proteção de dados existente com um
projeto de lei de proteção de dados que favorece as grandes empresas de
tecnologia e perpetua a ideia errônea de que a democracia deve sair do
caminho".
Da mesma forma, Zuboff critica a Apple e o Google por assumirem
o controle do rastreamento da Covid, mas e se o sistema deles simplesmente
funcionasse melhor do que os sistemas centralizados preferidos pelas
autoridades de saúde europeias?
Ela ri da sugestão.
Mas admite que a
regulamentação é prejudicada "porque não podemos entrar [nas empresas de
tecnologia] para saber o que realmente está acontecendo. Estamos regulamentando
com viseiras, não entendemos bem o nosso adversário".
Zuboff insiste que seu ataque não é contra a tecnologia em si,
mas contra a lógica econômica que a sustenta –"roubo".
Ela oferece a
possibilidade de usarmos dados e previsões para o bem comum. O contra-argumento
é que existem compensações básicas.
Os serviços de tecnologia, seja para prever
respostas de texto ou as rotas de direção mais rápidas, só podem funcionar
acumulando dados e reduzindo nossa privacidade.
Ela compara os gigantes da tecnologia do Ocidente ao estado de
vigilância da China. "Este é um mundo em que a privacidade foi extinta.
A
privacidade hoje é uma categoria zumbi. Nenhum de nós tem privacidade, mesmo
como a víamos no ano 2000."
Seu senso de distopia é visceral. "Alguém acaba de inventar
um tipo de tinta que você pode colocar no rosto para confundir o reconhecimento
facial. Os jovens do Reddit estão muito animados com isso. É terrível,
Henry!"
A abolição do capitalismo de vigilância requer novas leis que
permitam às sociedades decidir "o que se torna dados, em primeiro lugar, o
que compartilhamos, com quem e com que finalidade".
Em vez disso, a tecnologia avança, principalmente na forma de
inteligência artificial. "O ChatGPT nos abalou.
Ele chocou as pessoas,
forçando-nos a reconhecer o quão longe a IA chegou, praticamente sem lei e
governança democrática para moldar ou restringir seu desenvolvimento e
aplicação."
O desenvolvimento da IA contou com o roubo de dados humanos,
afirma. Ela aponta esperançosamente para a Lei de IA proposta pela UE –"a
primeira lei a afirmar a governança democrática sobre a aplicação da IA".
Mas é difícil não sentir que, mesmo quando o Vale do Silício tropeça, ainda
está um passo à frente.
Henry Mance- Financial Times
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves