Agir
como outro requer autossupressão
Por esta ótica, atuar é o oposto de um processo
criativo de auto-expressão
Escrevi aqui recentemente que o cérebro em estado criativo para
de se auto-policiar e se deixa levar pela própria bagagem acumulada ao longo da
vida, formando e descobrindo livremente novas associações entre os elementos,
incluindo memórias e emoções, em seu repertório.
Os produtos da nossa
criatividade são, portanto, altamente pessoais —o que é garantido pelas
estruturas do sistema auto-referente do córtex cerebral, que juntam todas as
partes do “eu” e tomam conta do comportamento durante as ações de improviso.
Ou
seja: os momentos criativos são quando somos mais puramente nós mesmos.
Não deveria ser surpresa, portanto, descobrir que tornar-se
temporariamente outra pessoa envolve o mecanismo contrário: calar a si mesmo, e
agir conforme um plano externo.
Por esta ótica, atuar —agir como se na pele de
uma personagem— é o oposto de um processo criativo de auto-expressão. Atuar
requer autossupressão.
Quem diz isso são neurocientistas da Universidade McMaster, em
Ontário, no Canadá, que publicaram em 2019 um estudo com o delicioso nome de “A
Neurociência de Romeu e Julieta”.
O nome era perfeitamente apropriado: os
pesquisadores convidaram atores e atrizes profissionais, adeptos do método de
atuação de Stanislavski, a encarnar Romeu e Julieta, respectivamente, de dentro
do aparelho de ressonância magnética, que capta as minúsculas variações de
atividade do cérebro pela sua interferência com o campo magnético gerado pela
máquina.
O método consiste em incorporar personagens de dentro para fora,
adotando-se sua personalidade, e não encarná-los gestualmente, de fora para
dentro.
O estudo comparou o padrão de atividade cerebral enquanto os
voluntários respondiam a perguntas como si mesmos; como si mesmos, mas fazendo
o sotaque inglês de Shakespeare; e com o mesmo sotaque, mas agora atuando como
se fossem Romeu ou Julieta.
O resultado é que na pele de seus personagens, os atores estão
literalmente fora de si: as estruturas mediais do córtex pré-frontal que nos
mantêm integrados, normalmente fazendo a interface entre razão e emoção que
define nosso temperamento e personalidade, estão fortemente desativadas.
O
“self”, portanto, se esvai enquanto o ator encarna outra pessoa.
Enquanto isso,
o córtex pré-cuneal, também na face medial do cérebro mas próximo às áreas
visuais, grande responsável pela atenção, funciona a todo vapor, mantendo no ar
as várias partes do Outro incorporado.
Atuar é
literalmente deixar de ser si mesmo —o que, ao contrário de criar, requer
grande auto-controle.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL