A memória é a consciência inserida no tempo
É relembrando,
entendendo e aprendendo com o passado que se constrói um futuro melhor.
Este ano marca os 60 anos do golpe militar. A decisão do governo
de não relembrar o golpe é lamentável.
É relembrando, entendendo e aprendendo
com o passado que se constrói um futuro melhor.
Foi durante a ditadura militar que a Amazônia começou a sofrer uma destruição
ambiental sem precedentes.
Ancoradas em ideais de integração regional e
segurança nacional, as então chamadas políticas de desenvolvimento promoviam a
exploração de recursos naturais ignorando por completo as demandas e cultura
locais.
Isso fica claro no lema "homens sem terra para
terra sem homens" promovido pelo presidente Médici que, em 1970, criou o
Programa de Integração Nacional (PIN).
O presidente via a Amazônia como a
solução para problemas fundiários no Nordeste.
Abertura de rodovias, construção de barragens,
subsídios fiscais para a agroindústria e a promoção de assentamentos agrícolas,
que atraíram milhões de migrantes, transformaram a Amazônia.
Essas mudanças tiveram consequências ambientais
devastadoras e impactaram a saúde pública. Entre 1964 e 1990, o número de
casos de malária aumentou 412%.
Em meados dos anos 80, Rondônia era considerada
a capital da malária no Brasil.
A retomada da exploração desenfreada da Amazônia
durante o governo Bolsonaro deixou um rastro de destruição
cujas consequências ainda são sentidas.
Considerando o garimpo em áreas indígenas (o que é ilegal), 62% da área
garimpada desde 1985 foi aberta entre 2018 e 2022!
O resultado é semelhante ao visto durante a
ditadura: malária, desnutrição, contaminação por mercúrio, violência etc.
Problemas ainda não resolvidos dada a dificuldade em unir diferentes setores no
efetivo restabelecimento dos serviços destruídos durante o governo anterior.
Um
trabalho recentemente divulgado pela Fiocruz revela as condições sanitárias
precárias que yanomamis vivendo na região do alto rio
Mucajaí (em Roraima) enfrentavam em outubro de 2022.
Cerca de 15% apresentavam anemia, com maior
prevalência entre menores de 5 anos (27%).
Com relação a medidas
antropométricas, 47% apresentavam baixo peso. Entre os menores de 12 anos, 92%
apresentavam baixo peso.
Com relação a malária, cerca de um quarto dos
indivíduos relataram ter tido uma infecção recente (últimos 12 meses).
Exames
feitos pela equipe de pesquisa revelaram uma taxa de 117 casos a cada mil
habitantes, o que é mais do dobro do limite inferior da categoria de alto
risco, conforme definido pelo Ministério da Saúde.
Somente 15,5% dos menores de 12 anos que possuíam
caderneta de saúde estavam com a vacinação em dia.
Além disso, anemia e
deficiências na capacidade cognitiva estavam associadas a contaminação por
mercúrio.
É provável que outros povos indígenas estejam
enfrentando desafios semelhantes.
Especialmente os Kayapó e Mundukuru que,
junto com o povo Yanomami, são os mais atingidos pelo garimpo predatório. Digo
"provável" pois não há dados nem monitoramento detalhados.
Esse problema foi ressaltado no plano de
aperfeiçoamento da saúde indígena preparado pela Secretaria de Saúde Indígena
do Ministério da Saúde. A solução precisa ser rápida!
Entretanto, apesar da contaminação por mercúrio ser
algo amplamente discutido, a necessidade de monitorar a presença de mercúrio na
água e em alimentos consumidos pelos indígenas não foi incluída no plano de
aperfeiçoamento, conforme eu já havia destacado em fevereiro.
O legado da ditadura militar para a Amazônia e os
indígenas persiste. Não o relembrar é uma via para repeti-lo no futuro.
MARCIA CASTRO - professora de
demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de
Saúde Pública de Harvard.