Dizer não faz parte da recuperação do alcoólatra
Recusei um
trabalho em Tóquio, assim como recuso convites quase inegáveis de festas; tenho
que pensar em mim primeiro
Às vezes é difícil dizer não.
Se no começo da
recuperação não era fácil ficar recusando mil vezes as ofertas de bebidas,
hoje, com a sobriedade, me vejo na condição de conseguir recusar muita coisa.
Antes não me achava capaz de dizer "não", mas hoje digo com
tranquilidade. E isso é libertador.
As escolhas são diárias e a todo instante,
desde o que vou tomar de café da manhã até com quem vou me relacionar e de que
forma. Recentemente me vi numa encruzilhada no campo profissional.
Não foi a
primeira vez, é claro. Lembro que na época da pandemia tive uma oferta maravilhosa
para ir trabalhar em Tóquio, nas Olimpíadas.
Por um lado, seria um sonho
conhecer aquela cidade e o desafio da empreitada era tentador; por outro,
estávamos no auge da Covid-19 e o país não é logo ali.
Demorei muito para decidir se ia ou não, quase
cheguei a emitir o bilhete. Mas então me dei conta de que estava pensando mais
no julgamento dos outros do que no meu próprio bem-estar.
O que fulano ia
pensar de eu ter negado uma oportunidade dessas? Essa recusa não seria ruim
para a minha própria carreira?
Bem, a questão era que eu me veria em uma situação
de insegurança planetária estando beeeem longe de casa.
Decidi não ir. Fiquei
um ou dois dias meio que arrependida, mas depois vi que tinha tomado a melhor
decisão para mim.
E o "depois" é importante. Não dá para ficar
vivendo o que não foi. Tá decidido, pronto. Fim de jogo, começa outra partida.
Minha recuperação deve vir em primeiro lugar, não
posso me esquecer. E a oportunidade que me fora oferecida recentemente me
levava a lugares que poderiam me deprimir, eu antevia.
Lembranças de épocas
passadas. Mas trabalho é trabalho e a princípio decidi ir em frente. Ao longo
de um mês eu consegui tocar algumas coisas, e aí a situação começou a pesar.
O
excesso de compromissos ocupava demais o meu dia e me estressava.
Pensei muito. Conversei com muita gente, mas a
palavra final tinha que ser minha.
E foi. Voltei atrás e me desliguei.
Se me
arrependi? Não. Claro que no começo dá certa desestruturada, o medo do que vem
pela frente é grande, mas a palavra arrependimento não faz parte do meu
vocabulário de recuperação.
É preciso ir em frente, encarar as escolhas e não
pensar no que eu possivelmente estaria perdendo.
Com a bebida foi assim inúmeras vezes.
Até agora
recebo convites quase que inegáveis de festas e encontros com possíveis
relacionamentos, mas tenho que pensar em mim: se pinta no horizonte uma
eventual ameaça de não resistir a um copo, não dá. Digo não e o tempo me dá
caminhos.
Tracei o paralelo entre minha decisão de trabalho e
minha escolha da sobriedade porque no começo parecia impossível ou muito
difícil negar bebida.
Mas não é. É só lembrar dos inúmeros malefícios que o álcool me trazia e
pronto, o alívio se instala.
Claro que sempre tem um ou outro que insiste que
eu beba para acompanhar, mas não são muitos. E eles vão desaparecendo.
Ou param
de insistir quando se dão conta de que, sóbria, eu sou melhor companhia, mais
agradável.
Não consigo e não posso me esquecer que há pouco mais de um mês estive em uma situação delicada de
dissociação. Foi um episódio seríssimo, que me deixou marcas.
Não contei aqui,
mas acabei sendo internada numa clínica meio barra pesada —muitas vezes as
clínicas são jogo duro—, e às vezes havia lutas entre as internas.
Todo dia, no banho, olho pro meu braço e vejo a
mordida que tomei de uma das internas. Não sei precisar por quê, como se deu,
mas a lembrança da clínica já é o bastante para eu falar vários nãos
atualmente.
O meu limite só eu sei, as minhas dores, a minha
ansiedade.
Na ativa, aceitava trabalho e ia beber para tentar fazer melhor.
Fazia pior. É bom dar um passo atrás, recusar, dizer que nesse momento não sou
capaz de determinadas tarefas.
Foi bom não ter ido para Tóquio naquela ocasião
—quem sabe ainda não vou?
ALICE S. – coluna Vida de Alcóolatra, jornal FSP