Paulo Freire é decente e democrático, nunca
silenciaria quem dele discordasse
Paulo Freire é uma pessoa decente!
Há
pessoas que, de propósito, distorcem o repertório freiriano com o objetivo de
desqualificar sua relevância na educação contemporânea.
Paulo Freire é uma pessoa decente!
A prática vivencial e o patrimônio cultural que nos
legou justifica o tempo verbal no presente, e assim precisa ser, pois não há
como aquilatar o legado de uma pessoa como ele e supor que este fique somente
na memória do pretérito, em vez de também impregnar, como de fato ocorre, a
história do presente e os desdobramentos vindouros.
De novo: Paulo Freire é uma pessoa decente!
E o é
exatamente por não ter procurado edificar suas práticas e concepções a partir
do logro da boa-fé de outras pessoas, ou acolhido o embuste no qual assumisse
como da própria autoria o que estivesse na lavra de outrem, ou da intenção do
ludibrio que conduzisse ao engodo gerador de vantagens exclusivistas, ou,
ainda, da promoção do engano intencional que levasse alguém a compreender de
modo equivocado o que deveria ser assimilável de forma transparente, para
manter este alguém sob seu domínio.
Paulo Freire é
um intelectual honesto!
E, assim, se agora presencialmente conosco estivesse,
não repudiaria —como jamais o fez— objeções e discordâncias ao seu trabalho,
desde que fundamentadas em argumentações sinceras e contraposições idôneas, que
expusessem com suportes e embasamentos verídicos os eventuais deslizes,
desacertos e lapsos nos quais pudesse ter incorrido.
Um intelectual honesto de fato não entende como
ofensa o que pode ser uma contribuição para refinamento e correção do que
elabora, mas de maneira alguma se submete à dissolução do que propugna apenas
por encontrar desaprovação, especialmente porque essa desaprovação pode ser oriunda
justamente da correta compreensão e, daí, o repúdio.
Paulo Freire encontra mais denegação por parte de
quem o entende muito bem, com as decorrências políticas que seu ideário
implica, do que por parte de quem pouco o conhece e que em certos momentos é
maldosamente induzido à burla.
Uma parte dos que dele discordam o faz
virtuosamente, assumindo com sinceridade as divergências de caminhos e suas
resultantes, em um jeito escrupuloso.
Contudo, há outra parte que, de
propósito, distorce o repertório freiriano, com o objetivo de desqualificar a
relevância expressiva deste —mundo afora— na educação contemporânea, e, além
disso, pretende ardilosamente imputar a ele a composição das mazelas e penúrias
da educação nacional.
Este ponto, o da distorção, é tão relevante para
demonstrar o papel da trapaça na intenção de desabilitar a proeminência de
Paulo Freire, que vale trazer dois exemplos concretos.
Uma das contribuições mais eminentes que ele fez à
filosofia da educação contemporânea é ter adensado a compreensão de que nenhuma
pessoa é capaz de somente ensinar, assim como não há nenhuma que seja capaz de
somente aprender; em outras palavras, todas e todos, de algum modo e em
circunstâncias variadas, somos educadores e educandos uns dos outros, em meios
às nossas vivências, convivências e relacionamentos, o que exclui a
possibilidade de haver, de um lado, somente néscios discentes e, do outro,
somente sábios docentes.
Essa condição não suprime nem a tarefa e nem o lugar
de quem tem responsabilidade de formar, mas requer que quem o faça leve em
conta, inclusive como alavanca de aperfeiçoamento recíproco, que quem está em formação
não chega sem algo saber, e quem exerce o ensino não sabe tudo.
Ora, um dos subtítulos internos de sua obra mais
merecidamente afamada, “Pedagogia do Oprimido”, é: “Ninguém educa ninguém,
ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo
mundo”. Porém, se excluirmos (como na burla feita por minoria furiosa) o que
vem após a sentença inicial, recortando do conjunto da ideia só o ponto de
partida, ficaria “ninguém educa ninguém”, o que não somente distorce o sentido
real (ninguém apenas educa, ninguém é apenas educado) como, além de tudo,
sugere ter Paulo Freire depreciado o ato educativo e o ofício de quem o faz!
Outro exemplo, mais usual, é sobre a afirmação por
ele feita, em muitas de suas obras, de a Educação ser um igualmente um ato
político. Isto é, todo ato pedagógico —porque não é neutro e influencia,
interfere, colabora ou prejudica uma comunidade — é similarmente um ato
político.
É claro que Paulo Freire está fazendo referência à política na
acepção clássica grega, como sendo a maneira como coletivamente organizamos
nossa vida comum, coabitada na pólis, na interrelação entre o privado e o
público, assemelhado aos que os latinos chamaram de civitas, como cidade,
chegando entre nós ao termo cidadania.
Em momento algum Paulo Freire indicou que o ato
pedagógico, a educação, deva ser partidária, ou doutrinária, ou proselitista,
ou catequética. Ao contrário!
Se assim o fosse, e defendesse a manipulação,
teria demolido o cerne da sua filosofia que é o ato pedagógico ser fomentador,
para cada pessoa e para todas as pessoas, de uma consciência livre, com a
educação como prática da liberdade e uma pedagogia da esperança e da autonomia.
Por isso, Paulo Freire é uma pessoa democrática!
Nunca procuraria silenciar quem dele discordasse, calando a dissensão, impondo
o pensamento único, excluindo a condição de fazer do diálogo a presença da
mutualidade do proveito, no lugar de construir uma argumentação que pudesse ser
suficiente para convencer (e não vencer!).
Como pessoa decente, intelectualmente honesta e
democrática, ele permanece entusiasmando a lapidação do que chamou também de
“inédito viável”, aquilo que ainda não é (por isso, inédito) mas pode ser (por
isso, viável).
E qual é esse inédito viável entranhado no percurso
de Paulo Freire? Vida boa, para todas e todos, em qualquer lugar e época, e,
como, diria ele, cheia de boniteza!
Mario Sergio
Cortella - filósofo, com doutorado em
educação pela PUC-SP, sob a orientação de Paulo Freire, de quem foi chefe de
Gabinete e a quem substituiu no cargo de secretário municipal de Educação de
São Paulo (1991-1992)