O que é o transtorno por uso de
cannabis, que afeta até 20% dos usuários
O quadro é marcado
pela dependência do consumo desta substância psicoativa e pode afetar o
bem-estar e a saúde mental do indivíduo
A descriminalização do porte de maconha para consumo
próprio pelo Supremo Tribunal Federal (STF) levantou uma série
de dúvidas sobre os impactos da substância psicoativa na saúde.
Um dos pontos envolve o chamado transtorno por uso
de cannabis, uma condição ainda pouco estudada
pela ciência e praticamente desconhecida pelo
grande público.
O quadro, que pode afetar até dois em cada dez
usuários de maconha (entenda mais abaixo),
está relacionado ao abuso do consumo da droga e gera perdas significativas no
bem-estar e na qualidade de vida.
O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor
da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
avalia que existe uma grande dificuldade em diferenciar usuários de dependentes —ou aqueles indivíduos que
não se encaixam nem na primeira e nem na segunda categoria.
"Mas o transtorno por uso de cannabis seria
equivalente ao que se chama de dependência", explica ele.
Segundo o psiquiatra, essa condição pode se
manifestar de diferentes maneiras. Para começar, ela está relacionada à
quantidade e à frequência no consumo.
"O transtorno atrapalha as atividades
habituais de trabalho e estudo, prejudica as relações interpessoais e gera
desinteresse."
"Além disso, qualquer pensamento ou tentativa
de reduzir o consumo gera sintomas intensos de ansiedade ou depressão",
caracteriza Silveira, que estuda dependência há 40 anos.
QUANTAS PESSOAS TÊM O
TRANSTORNO?
Silveira orientou uma das primeiras (e únicas)
pesquisas a avaliar a saúde mental e a qualidade de vida de pessoas que fazem
uso recreativo de cannabis no Brasil.
O trabalho foi publicado em dezembro de 2021.
Por meio de um questionário online, que contou com
a participação de 7.405 adultos, os especialistas descobriram que 17,1% dos
participantes se classificavam como usuários ocasionais e 64,6% diziam fazer
consumo frequente de maconha.
Já 7,7% dos respondentes se declararam como
"usuários disfuncionais", algo que pode ser classificado como um
transtorno no uso dessa substância.
"Esse número se aproxima muito ao que é visto
em outros levantamentos. Nos Estados Unidos, cerca de 9% dos usuários de
cannabis apresentam dependência", compara Silveira.
O inquérito brasileiro ainda observou que os tais
usuários disfuncionais eram mais afetados em termos de bem-estar: eles tinham
uma pior qualidade de vida, além de apresentarem com mais frequência doenças
como depressão e ansiedade em comparação com aqueles que se entendiam como
usuários ocasionais ou frequentes.
Uma outra investigação realizada pelo Instituto de
Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente, nos Estados Unidos, calculou a prevalência
do transtorno no Estado de Washington, onde a maconha para uso recreativo está
legalizada (e não apenas descriminalizada, como é o caso do Brasil após a
decisão do STF).
Os dados foram publicados no periódico
especializado Jama Network Open em agosto de 2023.
Os autores entrevistaram 1.463 indivíduos que
haviam feito uso de cannabis nos 30 dias anteriores.
Seguindo critérios estabelecidos nos manuais
internacionais de psiquiatria, eles observaram que o transtorno no uso desta
substância afetava 21,3% dos participantes, ou um quinto do total da amostra.
A taxa foi a mesma entre aqueles que consumiam
maconha para uso recreativo, medicinal ou com ambas as justificativas.
Mas a gravidade do quadro variou de forma
significativa entre essas três turmas.
Segundo a pesquisa, 1,3% dos usuários de cannabis
com fins medicinais apresentavam o transtorno em níveis moderados ou severos.
Essa taxa subiu para 7,2% naqueles que faziam uso
recreativo e para 7,5% no grupo misto (que mesclavam uso medicinal e
recreativo).
O QUE
AUMENTA O RISCO DE DEPENDÊNCIA
Silveira explica que o transtorno no uso de
cannabis acontece por uma somatória de diferentes fatores.
"Um sinal de alerta é o padrão de uso, quando
o indivíduo altera a frequência ou a quantidade de consumo. Por exemplo, se ele
passa a fumar todos os dias", pontua o psiquiatra.
"Claro, se a pessoa fuma meio cigarro ao dia,
antes de dormir, isso não é algo que gera preocupação. Mas se ele já acorda com
aquela necessidade incontrolável de acender um baseado, há um indício de
problemas", pondera ele.
Outro comportamento que pode desembocar no
transtorno envolve uma espécie de transição do uso recreacional para um consumo
que envolve justificativas de bem-estar ou saúde —sem a devida avaliação de um
profissional da área.
"É o caso da pessoa que está nervosa, triste,
ansiosa e decide fumar maconha como uma forma de aplacar esses sintomas",
exemplifica o médico.
O psiquiatra ainda destaca dois grupos onde o risco
de danos relacionados ao consumo de cannabis é mais elevado.
"Primeiro, os jovens. É absolutamente
contra-indicado fumar maconha antes dos 21 anos. Essa é a idade em que o
amadurecimento do cérebro termina", cita ele.
Antes dessa idade, os compostos presentes na planta
podem afetar o desenvolvimento dos neurônios e das demais células do sistema
nervoso— o que gera repercussões negativas pelo resto da vida.
O pesquisador explica que a maioria dos problemas
psíquicos relacionados à cannabis aparece em indivíduos que experimentaram essa
substância psicoativa em idades precoces.
"O segundo grupo inclui pessoas que têm casos
de esquizofrenia na família. Nesse contexto, o consumo de cannabis pode ser
bastante prejudicial", complementa ele.
OS
TRATAMENTOS DISPONÍVEIS
Para os casos em que o transtorno de uso de
cannabis é identificado, Silveira destaca dois possíveis caminhos de
tratamento.
"O primeiro é a estratégia de redução
progressiva, também conhecida como redução de danos", cita ele.
Essa alternativa envolve diminuir a quantidade
consumida aos poucos. Também é possível modificar a rotina do indivíduo—
alterando os horários em que ele estava acostumado a acender um baseado, por
exemplo.
A Associação Americana de
Psiquiatria aponta que sessões de psicoterapia podem ajudar
nesse processo.
Em alguns casos, os médicos também prescrevem
medicações com canabinoides, para diminuir aos poucos a necessidade da
substância.
"O segundo caminho é interromper o uso de
forma repentina e focar o tratamento nos problemas que vão surgir na sequência,
como é o caso de ansiedade ou depressão", acrescenta o médico.
Por fim, Silveira avalia que a recente decisão do
STF pode melhorar a forma como o transtorno de uso de cannabis é tratado no
país.
"Estamos 30 anos atrasados nesse debate.
Enquanto o mundo todo discute a legalização da maconha, nós ainda estamos
falando de descriminalização", observa ele.
"O Brasil estava do lado de Irã, China,
Indonésia e outros países totalitários ao criminalizar o porte de maconha para
consumo próprio", opina o médico.
Silveira entende que um cenário de criminalização
do porte de cannabis para uso pessoal— como o Brasil tinha até poucos dias
atrás— gera muitas dificuldades do ponto de vista da saúde pública.
"A pessoa fica constrangida em falar
abertamente que usa maconha, pelo medo de ser rotulada como criminosa",
argumenta ele.
"A descriminalização facilita o acesso aos
serviços de saúde. E eu, como médico, posso falar abertamente sobre uso seguro
e formas de prevenção ou tratamento para esses casos de dependência",
conclui ele.
ANDRÉ BIERNATH – jornalista BBC News