Vale a pena lembrar do que a mente guardou de modo distorcido?


Vale a pena lembrar do que a mente guardou de modo distorcido?    

Beber em excesso nos tira da realidade e cria um mundo que só é visto de verdade pelos outros que nos rodeiam

Imagina fazer uma retrospectiva de todos os acontecimentos da vida de um alcoólatra

Em muitas ocasiões os episódios se apagam, ficam no limbo da memória alcoólica. Recentemente li o livro "A Noite da Arma", do jornalista David Carr. 

Alcoólatra já em recuperação, ele resolveu contratar uma equipe para investigar sua própria vida.

Haja coragem para fazer isso. Fato é que ele descobriu muita coisa que sua memória registrara de modo equivocado. 

Ele e sua equipe procuraram amigos, conhecidos, donos de bares e assim foram reconstituindo a vida pregressa do autor.

Beber em excesso nos tira da realidade e cria um mundo que só é visto de verdade pelos outros que nos rodeiam. Perdemos a perspectiva de distinguir tudo. Sóbrios, resta a vontade de reparar os danos.

Reparações dirigidas àqueles que prejudicamos não é tarefa fácil justamente por que não sabemos muito bem o que fizemos e a proporção que isso tomou para o outro.

Como posso me desculpar por algo de que não lembro ao certo como ocorreu? Aí entra a pesquisa do jornalista Carr. Saindo da ficção do mundo etílico, ele conseguiu aos poucos desembaçar episódios que até então estavam apagados na memória ou distorcidos.

Não sei se eu teria o mesmo interesse. Não porque não queira me desculpar com as pessoas, mas porque acho que muita coisa deve mesmo ficar no passado. Para mim, a melhor forma de cuidar do passado e me desculpar é mostrando como mudei.

Apurar episódios que vivi entorpecida pela bebida há muitos anos faz sentido hoje? Lembra a história daquela amiga que não me convidou para o casamento

Acho que até já comentei aqui que ela nem está mais casada e de vez em quando nos vemos em um ou outro evento. O lance do casamento me machucou muito, mas ela teve seus motivos e, sinceramente, não quero mais saber o que fiz. 

Mas se passaram mais de dez anos. Será que faria sentido sentar com ela e perguntar exatamente por que ela não me convidou? Ou melhor, por que ela não quis mais me procurar?

O álcool só torna a vida solitária. Gosto muito da ilustração da coluna, de uma mulher dentro de uma garrafa. A minha vida era assim: abri mão de ter uma vida normal, de conviver com as pessoas. 

Ficava me entorpecendo e não adiantava me alertarem do perigo que eu infringia a mim e aos outros. Mas enfim, chegou o dia do basta. E tentei me refazer. Com muuuuuuita paciência e tolerância e amor a mim mesma.

Às vezes amigos comentam um fato ou outro e vou me dando conta de como ocorreram as histórias que minha mente guardou de modo distorcido. 

Prefiro assim, que me digam aqui e ali, sem que eu proceda a uma investigação. Mergulhar fundo na minha podridão alcoólica? Estou fora. Talvez o estrago fosse maior e a vergonha predominasse.

O livro é divertido, mas às vezes muito triste e pesado. O autor não tinha problema "só" com o álcool, ele abusava de outras drogas também, como cocaína, o que torna as coisas ainda mais drásticas.

Bebi, e muito. Detonei muitas situações, mas hoje consigo me dar conta de que tudo vai se ajeitando se não bebo e se procuro ajuda nos lugares certos. Tudo, absolutamente tudo, tem jeito quando a bebida sai de cena.

ALICE S. – blog Vida de Alcoólatra

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