Retórica do ódio, como a de Bolsonaro, estimula
violência de seguidores, dizem estudos.
Processos de
desumanização e demonização do outro precederam os genocídios de judeus e
tutsis.
Se eu ganhasse um
centavo toda vez que ouvi alguém dizendo que a violência de Bolsonaro "é
só falação", "não é pra levar a sério", "é da boca pra
fora", teria ficado mais rico que o Elon Musk, mesmo com a inflação atual.
Esse tipo de conversa parte do pressuposto de que não há relação real entre o
que um líder político diz e as atitudes de seus seguidores.
O próprio
presidente parece acreditar nisso – logo após ser esfaqueado em 2018, declarou,
aos prantos: "Nunca fiz mal a ninguém".
Há boas razões
empíricas para acreditar que a premissa por trás desse raciocínio está errada.
Retórica política violenta produz violência.
A brilhante ideia de jogar um homem com problemas mentais numa câmara de gás
improvisada, que estarreceu quem ainda tem um pingo de humanidade
neste país, não partiu de Brasília, obviamente.
Mas, ao que parece, líderes políticos
como Bolsonaro ajudam a criar ambientes em que esse tipo de coisa acontece com
mais frequência.
Os mecanismos
psicológicos por trás disso são bem conhecidos.
Não há genocídio moderno que
não tenha sido precedido de uma campanha de desumanização e demonização do
"Outro", do inimigo, do estrangeiro.
Cartuns e filmes nazistas
comparando judeus a ratos são o exemplo mais famoso.
A prática, porém, é
muito mais comum do que se imagina.
Os massacres dos anos 1990 que devastaram
Ruanda, na África Oriental, só se tornaram possíveis porque programas de rádio
incentivavam membros da etnia hutu a "matar as baratas" – os que
pertenciam à etnia rival dos tutsis.
Esse tipo de prática pega carona num
reflexo cognitivo muito mais antigo da nossa espécie, responsável pela
tendência universal de dividir o mundo entre "nós" e "eles"
usando elementos como aparência física, língua e comportamento.
Tão importante
quanto fixar uma imagem desumanizada do inimigo na cabeça do grupo de
seguidores está a dessensibilização deles.
Ou seja, martelar constantemente as
mensagens violentas, transformando-as numa espécie de ruído de fundo do
discurso político, faz com que esse tipo de pensamento pareça cada vez mais
natural e aceitável.
Um estudo de 2017 liderado por Wiktor
Soral, da Universidade de Varsóvia, mostrou como isso pode acontecer na
prática.
Em entrevistas e experimentos realizados com centenas de poloneses,
Soral e seus colegas verificaram que pessoas expostas a discursos que incitavam
o ódio a imigrantes tendiam a desenvolver mais preconceito contra estrangeiros
e a apoiar medidas severas anti-imigração.
E quanto a ações
diretas?
James Piazza, da Universidade do Estado da Pensilvânia (EUA), mapeou o
uso de discursos de ódio por líderes
políticos e a ocorrência de episódios de terrorismo doméstico
(ou seja, praticado por habitantes do mesmo país) em mais de 130 países, entre
o ano 2000 e 2017.
Os resultados, publicados em março de 2020, indicam que
esses atos de terror são quase dez vezes mais comuns em países nos quais os
políticos usam esse tipo de discurso rotineiramente (uma média de mais de 107
incidentes por ano, contra apenas 12 nos países em que discursos de ódio nunca
ou raramente aparecem nas falas de políticos).
Ideias e palavras
têm consequências.
A truculência policial é um produto tão brasileiro quanto
a feijoada, mas nunca foi tão celebrada e incentivada quanto hoje,
por obra e graça de uma figura que construiu sua carreira política em cima da
ilusão de que "matar vagabundo" é segurança pública.
Ele tem culpa no
cartório.
REINALDO
JOSÉ LOPES - jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor
de "1499: O Brasil Antes de Cabral".