Na semana passada, o Departamento de Defesa, em conjunto com
a Diretoria de Inteligência dos EUA, publicou o
mais abrangente relatório sobre objetos voadores não identificados.
O documento reúne um conjunto de informações que eram mantidas
em sigilo até agora com o título “Análise Preliminar: Fenômenos Aéreos Não
Identificados”.
Nele, são relatados 144 incidentes ocorridos entre 2004 e 2021
em que militares teriam encontrado objetos aéreos que não puderam ser
identificados, exceto em um caso (era um balão desinflado).
Muitos dos incidentes envolvem objetos que estariam voando em alta
velocidade, com trajetórias imprevisíveis e sem nenhum dispositivo de propulsão (hélice, turbina)
identificável.
O relatório é o sonho dourado de ufólogos que esperavam por algo assim
por décadas. Certamente terão assunto por muito tempo.
No entanto, é mais
interessante especular sobre o que esse relatório diz em relação ao próprio
estágio atual da humanidade do que sobre o que acontece fora da Terra.
Primeiramente, é curioso notar que o interesse por óvnis
costuma crescer em momentos de crise.
A coisa mais próxima do relatório
publicado agora é a Coleção Condon, publicada em 1969 pelo físico Edward
Condon, com financiamento da Força Aérea dos EUA.
Trata-se de outra ampla investigação sobre óvnis, só que dessa vez entre
1952 e 1969.
O ano da sua publicação é emblemático, pós-1968, e alguns anos
depois da crise dos mísseis, momento emblemático da Guerra Fria.
Anos antes, o próprio Condon havia sido perseguido pelo macarthismo e
acusado de ser membro de um novo movimento revolucionário potencialmente
comunista, a “física quântica”.
A arguição contra Condon é uma aula de defesa da importância da ciência
contra ataques da política. Condon foi defendido inclusive por Albert Einstein,
que escreveu ao então presidente Truman em seu apoio.
Na sua defesa, Condon fez uma declaração de apoio à ciência que se
tornou célebre: “Em suma, a maior contribuição para a real segurança que a
ciência pode fazer é a extensão do método científico para o estudo da
sociedade”.
Corte para 2021. O relatório sobre óvnis não diz praticamente
nada sobre extraterrestres, mas diz muito sobre o estágio atual da vida humana,
em que a ciência perde espaço novamente para a política.
Além disso, diferentemente de 1969, quando os avistamentos eram
feitos por instrumentos ópticos, as medições desse tipo de avistamento hoje são
feitas por meio de software.
Como qualquer usuário de celular sabe, software
pode não ser confiável. Muitos dos incidentes reportados podem ser resultantes
de erros de software ou do equipamento, tornados “reais” pela tecnologia.
O próprio relatório publicado reconhece essa possibilidade. Em
outras palavras, podem ser óvnis “virtuais”, resultantes de falhas das
tecnologias que intermedeiam nossa relação com a realidade. Seriam fantasmas da
própria tecnologia recursiva que nos envolve cada vez mais.
Mas e se mesmo assim houver ETs?
Como apontou o escritor de
ficção científica Liu Cixin, a sociologia cósmica pode ser resumida em dois
axiomas: 1) a sobrevivência é a necessidade básica de todas as civilizações; 2)
as civilizações continuam a crescer e a se expandir, mas o total de matéria no universo permanece constante.
A consequência desses axiomas é que jamais deveríamos revelar
nossa localização no cosmos. A segunda é que, se houver ETs, é melhor não
encontrá-los.
RONALDO LEMOS - Advogado,
diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte: coluna jornal FSP