Palavras cruzadas mudam o cérebro
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Cresci em uma família onde jogar palavras cruzadas,
o jogo de tabuleiro, era atividade comum nos fins de semana. O jogo era
concomitante a leituras ou bate-papos pontuados por protestos e comemorações.
Mas existe a modalidade competitiva do jogo, contra
o relógio, e com ranking nacional. Um grupo de pesquisadores na Universidade de
Calgary, no Canadá, vem estudando há anos como o cérebro processa palavras e
acessa a memória em competidores de torneios.
A equipe de Andrea Protzner descobriu que, com a
prática, os jogadores de palavras cruzadas identificam palavras dentre séries
de não palavras usando partes do cérebro que normalmente não participariam da
memória de significados dos verbetes, mas sim de percepção visual e memória
imediata, ou de trabalho –aquela capacidade de manter um número de telefone em
mente até digitá-lo. Jogar cruzadas portanto muda o cérebro, que coopta regiões
para resolver a tarefa em questão.
Os cientistas descobriram que jogadores
competitivos também têm menos dificuldade em identificar palavras na vertical.
Em um novo estudo, publicado na revista "Frontiers in Human
Neuroscience", a equipe investigou se essa habilidade visual com letras
passa a se aplicar também à identificação de outros tipos de símbolos. A
pergunta, portanto, é quanto uma habilidade específica altamente treinada pode
ser generalizada para outras.
A resposta é "depende". Em uma tarefa que
requeria identificar quando um símbolo aparecia duas vezes na mesma sequência,
jogadores competitivos tiveram o mesmo desempenho que voluntários sem
experiência, o que sugere que a expertise dos jogadores é restrita a letras. No
entanto, as regiões do cérebro envolvidas na tarefa eram diferentes entre os
grupos, e ainda mais distinta quando o ranking do jogador de palavras cruzadas
era elevado.
O resultado confirma uma das propriedades mais
distintivas do cérebro: ao contrário de um computador qualquer, o órgão se
modifica conforme o uso, tornando-se mais personalizado e melhor no que faz.
Meu cérebro, por exemplo, aprendeu a enxergar
anagramas e, talvez ainda mais importante, os buracos no tabuleiro onde
encaixar letras para fazer muitos pontos. Hoje só perco quando jogamos os três
e meu pai deixa prêmio após prêmio de triplo valor da palavra para minha mãe
coletar. Meus pais me treinaram bem...
Suzana Herculano-Houzel – neurocientista, professora da UFRJ, autora do
livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com