África tem muito a ensinar sobre inovação
Arrasada
por uma guerra civil, Moçambique está em pleno processo de reconquista do tempo
perdido.
Quando se pensa no continente africano nem sempre é comum
pensar em inovação.
Isso é um erro.
Primeiro por conta dos aspectos
tradicionais e da diversidade do continente, que sempre foram propícios para
experimentação e criatividade.
Recentemente, também pelo fato de haver uma
vitalidade enorme apontando para inovações tecnológicas e sociais no
continente.
Não é por acaso que se fala cada vez mais em afrofuturismo ou de Wakanda.
Moçambique pode facilmente ilustrar esses
conceitos. A história do país é cheia de desafios. A começar porque só se
tornou independente em 1975.
Logo após a independência mergulhou em uma guerra civil, que acabou
somente em 1992.
A guerra destruiu mais de mil escolas do país, além de arrasar
recursos e infraestrutura, incluindo flora e fauna. Até os elefantes de
Moçambique são especialmente agressivos, traumatizados pelo conflito.
No entanto, o país hoje está em pleno processo de reconquista do
tempo perdido. É um país demograficamente jovem que tem produzido iniciativas
inspiradoras.
Por exemplo, há um ecossistema de inovação e criatividade em
curso. A começar pela questão dos pagamentos digitais.
Há mais de dez anos é
possível transferir dinheiro pelo celular, sem precisar de conta bancária. Mais
do que isso, é possível sacar dinheiro nos caixas eletrônicos sem usar cartão,
apenas com mensagens de texto.
Ou ainda, pagar qualquer compra com o celular,
também sem cartão.
Enquanto o Pix no Brasil tem pouco tempo,
Moçambique tem um sistema de pagamentos digitais há bem mais tempo e com mais
funcionalidades que as implementadas até agora pelo Pix.
Além disso, há uma cena crescente de startups.
Por
exemplo, o Biscate.com. Trata-se de um site e aplicativo
de celular (acessível também por mensagens de texto) que permite aos 14 milhões
de trabalhadores informais do país encontrar trabalho eventual.
Em Moçambique há cerca de 1 milhão de empregos
formais, insuficientes para ocupar a força de trabalho.
Depois do sucesso inicial, o Biscate está agora investindo em organizar cadeias
produtivas mais complexas: conectar trabalhadores com habilidades distintas,
criando laços mais sólidos entre demanda e oferta.
A indústria cultural também avança. O X-Hub, por
exemplo, é uma iniciativa que permite a músicos, produtores audiovisuais e
outros profissionais criativos alavancarem seu trabalho, inclusive
internacionalmente.
Funcionam com capacitação, internacionalização
(traduzem tudo do artista para o português, inglês e francês).
Oferecem estúdio
de gravação e produção de vídeo. E criam uma rede capaz de profissionalizar a
produção local.
Como sempre gosto de lembrar, a cultura é a porta
de entrada para a economia do conhecimento. E o X-Hub aposta exatamente nisso.
Mais ao norte do país o Parque Nacional da
Gorongosa criou um programa de mestrado aberto a pesquisadores do mundo todo. É
uma rara junção de parque nacional, com pesquisa e programa social de apoio às
comunidades do entorno.
Cheguei inclusive a participar da maratona promovida
pelo parque com as comunidades vizinhas, com 2.500 participantes.
Enquanto corria com esforço máximo, fui
ultrapassado facilmente por um corredor local que corria de costas. Isso serviu
para mim de metáfora.
No continente africano há muita criatividade,
ousadia e formas diferentes de fazer as coisas. Mesmo correndo de costas, com
tantos desafios, o horizonte é cada vez mais de ultrapassagens.
RONALDO
LEMOS- advogado,
diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.