Nossa dignidade é uma condição para a sobrevivência psíquica
Uma das minhas primeiras pacientes, uma mulher com o dobro da minha idade, havia sido retirada dos cuidados da família ainda bebê, pelo conselho tutelar, em função de maus tratos. Nem sempre era fácil ouvir tudo pelo qual ela havia passado, mas também não faltavam gargalhadas de suas experiências para se safar das situações difíceis e o prazer por cada conquista. A única coisa que inviabilizaria minha escuta de iniciante seria ter sentido pena dela.
Com ela, aprendi que ter reconhecida sua dignidade é uma das condições para a sobrevivência psíquica dos sujeitos. Para o filósofo Emmanuel Kant (1724-1804), a dignidade humana se relaciona à ideia de que ao homem não se deve atribuir valor —no sentido do preço— pois ele é um fim em si mesmo, tem racionalidade e é insubstituível.
Recentemente atendi uma mulher lidando com um processo extremamente penoso de luto de um filho. Ela dizia não suportar a ideia de ser consolada por explicações religiosas, médicas ou pelo uso de remédios. Não buscava justificativas, mas o direito de ver reconhecida sua dor, sem atenuantes, sem desculpas, sem encobrir a lembrança do filho com a suposição de que existiriam respostas para o imponderável. Longe do consolo ou de soluções fáceis, buscava enfrentar o acontecimento e não entendia como as pessoas a sua volta não conseguiam respeitar sua posição. Dignidade é a palavra que me ocorre novamente.
O documentário “Cine Marrocos” (2019), ganhador do 24° Festival É Tudo Verdade, se passa nesse antigo cinema desativado que, em 2013, foi ocupado por famílias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
As perdas ocasionadas pela guerra, pela violência de gênero, pela depressão, pela impossibilidade de ser absorvido pelo mercado de trabalho acabaram por empurrar esses sujeitos para a extrema vulnerabilidade social e psíquica, criando uma Babel de raças, nacionalidades, línguas e histórias. Não há o tom piegas de quem acha que o outro é coitado, mas há sensibilidade e graça. Há respeito à solução de cada um e há compaixão pelas histórias. O diretor e sua equipe não deram dignidade aos seus personagens-atores, porque eles já a tinham. Seu grande mérito foi reconhecê-la.
Dignidade e ética estiveram na moda por um bom tempo, mas deram lugar à corrida pelo sucesso e pela felicidade. O sucesso a qualquer preço —e suas falácias— e a promessa de felicidade perene nos atormentam. Responde-se ao ideal de felicidade com depressões e ao imperativo de sucesso com o eterno receio de enfrentar o mundo adulto.
Essas formas idealizadas da existência humana dificultam encarar uma vida pautada por prazeres simples, momentos de felicidade esporádicos e sucessos não necessariamente financeiros ou midiáticos.
No consultório, se escuta homens e mulheres entre 40 e 50 anos supostamente bem-sucedidos que se perguntam porque raios se dedicaram tanto a coisas sem sentido e onde está a felicidade prometida.
Se nossos jovens puderem reconhecer valor nos sujeitos, independentemente dos imperativos sociais de status e alegria permanente, talvez fiquem menos reticentes em relação à vida adulta e possam investir em realizações que respondam a seus legítimos anseios.
Caso contrário, permanecerão assombradas por um fracasso garantido de saída, quando comparado a fantasias megalomaníacas. Reconhecer que situações podem ser indignas, mas que os sujeitos não, é o melhor possível a se ensinar aos filhos.
Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.
Fonte: coluna jornal FSP