Forte em Portugal, desprezo ao português brasileiro
também viceja aqui.
Dia desses, no Facebook, o linguista português Fernando
Venâncio desabafou: “Poucas coisas me irritam tanto como o antibrasileirismo
primário e militante que encontro por estas paragens”. Referia-se ao
antibrasileirismo linguístico, marca bandeirosa da cultura lusitana.
Qualquer escritor brasileiro que tenha lançado livros em
Portugal nas últimas décadas (sou um desses) sabe o que Venâncio quer dizer. As
portas que Jorge Amado escancarou de par em par no século passado se fecharam
em algum momento sobre corredores cada vez mais estreitos e labirínticos.
Monumento aos Descobrimentos, referência às grandes
navegações portuguesas, na região do Belém, em Lisboa Lalo de
Almeida/Folhapress
Sim, é claro que muitos editores,
críticos, jornalistas e outros portugueses esclarecidos insistem em furar com
brio essas defesas. Infiltrando-se nas brechas, porém, os brasileiros que se
expressam por escrito logo se veem escalados pelos leitores comuns d’além-mar como
representantes de uma versão menor, tosca e corrompida da língua “deles”. Se
soubessem cantar, dançar, contar piadas, temperando o verbo com aquele jeito de
corpo que é sua maior —ou quem sabe a única— vocação, talvez pudessem ser
levados a sério. Mas isso de escrever, francamente...
Nas palavras de Venâncio, há em Portugal uma
“desavergonhada altanaria perante os pretensos ‘erros’ de que o português
brasileiro estaria inçado”. O linguista vê esse sentimento integrado ao senso
comum, cultivado por “gente visivelmente de poucas letras, e poucas luzes”.
Refere-se a ele como “assustador”.
Eu prefiro o adjetivo “triste”. Assustador é constatar
que um antibrasileirismo tão pimpão e ignorante quanto o luso viceja aqui
também. Como reclamar do insulto de nos negarem em terra estrangeira o direito
de gozar livremente de algo tão pessoal e profundo quanto a língua materna, sem
ouvir sermões abestalhados sobre algum ideal platônico de gramática? Negamos a
mesma coisa por conta própria, o que é bem pior.
Parte dessa dissonância é comum às línguas imperiais. A
relação de amor e ódio entre o inglês britânico e o americano é tema do
recém-lançado “The Prodigal Tongue” (A língua pródiga), de Lynne Murphy,
linguista americana que mora e leciona na Inglaterra. Ela identifica em seus
compatriotas um “complexo de inferioridade verbal” e, nos britânicos, o que
chama de “amerilexofobia”, aversão esnobe a americanismos.
Nada tão diferente assim do que se vê no universo da
língua portuguesa ou da espanhola. Ex-colônias crescidinhas e ex-impérios em
queda vão sempre se emaranhar em teias complicadas de amor e ódio, admiração e
desprezo. Contudo, vale atentar para a diferença que Venâncio, repetindo no
post-desabafo o que já defendeu em livros, aponta entre os projetos
linguístico-coloniais de Lisboa e de Madri.
“No Brasil, Portugal abandonou a língua portuguesa à sua
sorte. E ainda bem! Pense-se na uniformidade lexical, gramatical e ortográfica
que a Espanha impõe como ideal à América de fala espanhola”, escreve o
linguista, concluindo que “o Português Brasileiro pôde desenvolver em invejável
liberdade a sua norma, e vive bem nela”.
O texto termina exigindo, ainda que de forma jocosa,
gratidão: “E venha daí um ‘obrigadinho’ a este Portugal que, oh felicidade,
nunca teve um projecto linguístico, nem cultural, para o seu Império”.
Muito bem, mas não estou tão certo de que o deus-dará
cultural seja algo que devemos agradecer. Seria necessário investigar primeiro
até que ponto se funda nele a ridícula autoestima linguística que leva o brasileiro
médio a situar nosso português três degraus abaixo do português europeu, e
este, pelo menos sete palmos abaixo do inglês.
Sérgio Rodrigues - escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a
Língua Brasileira”.
Fonte: coluna jornal FSP