Permitir
que o poder público colete dados sem nenhuma regra beira a inconsequência
Mesmo com os casos de vazamentos e abusos de dados, o
Brasil continua a não ter uma lei de proteção à privacidade. Todos os países do
Mercosul têm leis de proteção de dados pessoais. O Brasil é a exceção.
Esse cenário começa a mudar. Há uma movimentação no
Congresso e no Executivo para fazer avançar uma lei de dados. Uma das razões
para isso é o desejo do país de ingressar na OCDE. Ter uma lei desse tipo
aumentaria as chances de sermos aceitos nesse seleto grupo.
A má notícia é que o país teve anos para debater o tema
da proteção de dados com os diversos setores da
sociedade. Agora passa a impressão de estar fazendo tudo às pressas. Um dos
riscos de tratar uma lei dessa complexidade com um processo atabalhoado é a
possibilidade de cometer erros. Há ao menos um em curso.
Em reportagens que circularam na semana passada, consta
que o texto da lei brasileira vai criar um regime distinto de proteção para
dados pessoais coletados pelo setor privado e pelo setor público. Enquanto o
setor privado ficará sujeito a um grande número de regras, o poder público terá
praticamente carta branca para coletar, tratar e cruzar dados pessoais como
quiser.
Essa isenção é equivocada. Um dos principais desafios
para a implementação da tecnologia nos serviços públicos (o que inclui as
diversas ferramentas de governo eletrônico) é assegurar a confiança no uso
deles.
Pedestre
usa um dos terminais do LinkNYC, serviço de wi-fi gratuito da cidade de Nova
York
Nova York é um bom exemplo. Ao implementar seu sistema
de acesso público à internet por wi-fi, começou a enfrentar resistência da
população. O temor era que o sistema monitorasses os cidadãos, usando os dados
contra seus interesses.
Em face disso, a cidade criou uma robusta política de
privacidade, limitando a coleta dos dados e deixando claro sua finalidade de
uso. A partir daí o serviço LinkNYC pode se expandir.
Permitir que o poder público colete dados sem nenhuma
regra beira a inconsequência. No Brasil, o estudo que embasou o plano nacional
de internet das coisas, comissionado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia,
Inovações e Comunicações e pelo BNDES, traz uma longa e aprofundada discussão
sobre dados no âmbito governamental (importante mencionar que fui um dos
participantes na sua elaboração).
O estudo diz claramente que “a privacidade de dados no setor público é o
pilar estruturante da construção de aplicações em cidades inteligentes” e que
“a proteção à privacidade no setor público é a base para o desenvolvimento
seguro, transparente, equilibrado e sustentável” do uso da tecnologia no setor
público.
Dessa forma, governo eletrônico e privacidade são dois
lados da mesma moeda. É claro que o poder público precisa ter a prerrogativa de
processar e analisar dados para ganhar eficiência. A questão é que dá para
fazer isso garantindo a privacidade. Sem criar uma distinção artificial (e, a
meu ver, inconstitucional) no regime de proteção de dados.
Ronaldo Lemos -
É advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio e
representante do MIT Media Lab.
Fonte: coluna jornal FSP