De olho no suspeito


O latim ‘suspectus’ prova que a etimologia pode ser reveladora 

Nunca entendi muito bem por que a etimologia, o estudo da origem das palavras, perdeu prestígio com os estudiosos contemporâneos de línguas, mesmo mantendo entre leitores não especializados sua posição como matéria linguística divertida e de popularidade garantida.

As razões alegadas para esse declínio acadêmico vão desde o esgotamento do solo que teria sido promovido no século 20 pelos grandes nomes do ramo até sua identificação com uma perspectiva de diletantismo aristocrático, filológico, em grande parte fútil. Como disse Jorge Luis Borges, saber que o latim “calculus” significa pedrinha não ensina ninguém a fazer contas.

O gênio argentino tem razão, mas acho prudente manter um pé atrás com a acusação de inutilidade contra qualquer saber. O próprio Borges, com seus labirintos de referências literárias fictícias, ou seja, tiradas de trás da orelha, poderia ser vítima de um argumento semelhante. O risco de cair no anti-
intelectualismo é grande.

Quanto ao esgotamento do tema, é possível que tenha chegado perto de ocorrer nas línguas europeias em suas versões domésticas, mais sedimentadas. No entanto, o número de pontos obscuros ainda existentes no léxico brasileiro, com sua multidão de palavras de origens diversas submetidas a um processador popular de alto giro, não permite a ninguém dar por encerrado o mapeamento histórico.

Suspeito sendo interrogado pela polícia –

 

Mesmo nos casos em que já não há novidade por descobrir, o saber etimológico mantém seu encanto naquilo em que se assemelha à poesia: a capacidade de produzir no espírito do leitor centelhas de associações surpreendentes e reveladoras entre palavras, ideias e sensações, iluminando o mundo sob novos ângulos. Não é outro o segredo de sua popularidade.

O caso de “suspeito”, uma das palavras do momento no Brasil, ilustra bem essa capacidade. Existente em português desde o século 13, trata-se de um termo cuja história está acima de qualquer suspeita. Deriva do latim “suspectus”, adjetivo definido no velho dicionário Saraiva como “de que se desconfia; perigoso, arriscado; odiado, aborrecido”.

Até aí, nenhuma surpresa. A acepção dominante de suspeito em português, “sobre quem recaem grandes possibilidades de ser o autor, o culpado de algo” (Houaiss), é basicamente a mesma que o termo latino gerou em outras línguas românicas e até, pela via do francês, no inglês “suspect”.

A centelha produzida pela etimologia vem do fato de a palavra-mãe ter entre suas acepções uma que não chegou até nós e que destoa das outras —mais do que isso, contradiz tudo de negativo que o vocábulo original carrega. “Suspectus” é também o que desperta admiração.

Oi? O que pode haver de admirável em estar sob suspeição, em ser tratado com desconfiança? Não se trata disso. Para chegar a um entendimento satisfatório da questão é preciso recorrer ao verbo “suspicere”, do qual “suspectus” é particípio.

Na origem, o verbo queria dizer “olhar para cima”, tendo em sua composição o elemento “spec” (olhar com atenção, contemplar), que está presente também no código genético do espelho, do espião e do espectador.

Em outras palavras: em seu berço latino, “suspectus” é aquele que mantemos sempre em nosso campo de visão. Seja porque ele nos desperta admiração, e nesse caso se converte em ímã de olhares embevecidos, seja porque não merece confiança e com ele devemos estar em guarda. De uma forma ou de outra, é preciso ter os olhos bem abertos.

Sérgio Rodrigues - escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

Fonte: coluna jornal FSP

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