Um dos grandes desafios para se
tornar um bom investidor em Venture Capital é tentar realizar projeções de um
panorama futuro, buscando entender como o mundo estará diante de uma
perspectiva para daqui dez anos.
Os fundos de Venture Capital
normalmente são de longa duração, cerca de dez anos, e as empresas nas quais
esse tipo de fundo investe permanecem no portfólio em média por sete anos, e em
alguns casos, o fundo pode ficar por doze anos ou mais investido numa
companhia.
E essa tarefa de traçar um
horizonte futuro, que já não é simples, ficou ainda mais difícil diante da
pandemia de Covid-19.
Para tentar prever o cenário global
para daqui dez anos, é preciso refletir sobre diferentes âmbitos do
conhecimento, muito além da tecnologia e inovação.
O que vai ser importante para as
pessoas e para a sociedade? Que valores vão permear a sociedade daqui dez anos?
Quais serão as grandes mazelas? Em que estágio estarão as ciências biológicas?
Como será o comportamento da nossa espécie e como se darão as relações mais
importantes que teremos?
Acelerando ou freando tendências
atuais, o mundo em dez anos certamente será afetado pelas mudanças provocadas
pela pandemia.
Dessa forma, fica claro que alguns
modelos de negócios e alguns setores serão beneficiados diante de uma nova
dinâmica.
Caso um excelente time de
fundadores dedique suas energias ao modelo certo no segmento beneficiado, a
chance de uma empresa enorme ser criada é grande e, com isso, uma gigante
criação de valor para a sociedade e para os cotistas do nosso fundo.
Nesse sentido, creio que a forma
como nós nos relacionamos será decisiva para entender esta dinâmica. Por isso,
vale refletir como serão afetados importantes tipos de relacionamentos.
União ou segregação?
O primeiro ponto que podemos pensar
é sobre como se darão as relações intraespecíficas.
Como nós humanos vamos nos
relacionar entre si? Vamos nos aproximar mais como espécie, já que
redescobrimos como passar mais tempo com quem amamos? Vamos nos importar mais
com os nossos vizinhos? Cuidaremos melhor dos mais velhos? Renascerá o
sentimento de aldeia?
Ou será que a tendência é que a
população mundial se torne mais xenofóbica, vide a atual tensão crescente nas
relações entre Estados Unidos e China? A imputação de culpa da origem do vírus
à China pode criar tensões geopolíticas?
Cadeias de suprimentos
estratégicas, como fármacos, equipamentos hospitalares, circuitos integrados
serão certamente redesenhadas, impactando negativamente, sem sombra de dúvidas,
no processo de globalização. O ser humano vai então estar mais próximo ou mais
distante de seus pares?
Cuidado com o planeta
A segunda análise a ser feita é
sobre as relações entre nós, sapiens, e a biosfera.
Essa relação interespecífica será
repensada? Durante a pandemia, imagens de satélite registraram a redução dos níveis de poluição em diversos pontos
do país.
Essa redução não tem ocorrido
apenas no Brasil, mas nas principais metrópoles, em diversos países do mundo, o
que pode gerar uma reflexão positiva diante dos atuais modelos econômicos e dos
modais de transporte.
O homem, agora confinado, viu a natureza se aproximar dele e,
para muitas pessoas, isso foi algo inédito.
Em Veneza, por exemplo, a menor
exploração dos recursos hídricos permitiram a aproximação dos cardumes de
peixes e o consequente aparecimento de golfinhos em busca destes peixes.
Será que essa trégua irá nos
conscientizar em relação a como (não) cuidamos do nosso mundo? Será que existe
um equilíbrio e uma possível convivência entre a vida e sua biodiversidade a
ser buscada? Iremos redescobrir como viver em harmonia com o nosso planeta?
Por outro lado, não temos como
escapar da retomada econômica. A economia precisa se recuperar, precisamos de
curvas “V”, de melhor “earnings per share”.
Precisamos gerar empregos. O PIB
global tem que voltar a crescer. Não há outra opção, não há espaço. Nem mesmo
para a Natureza. Com o petróleo barato, as energias limpas se tornam inviáveis?
Podemos pensar na Natureza depois de resolver as mazelas humanas?
Relações de consumo
A terceira reflexão que trago é
sobre nossa relação com o mundo material. Pessoas e consumo. Capitalismo na sua
essência.
Depois de tantas semanas em
confinamento, começamos a perceber algo que deveria ser óbvio: realmente
precisamos de tudo que possuímos? E aquilo que precisamos, existe a necessidade
de possuirmos? Será que vamos nos desprender do virulento desejo de consumo? O
minimalismo vencerá a futilidade?
Na China, a flexibilização da
quarentena fez com a que Hermes batesse recorde de vendas, vendendo mais de dois milhões de dólares em um dia. Será
esta a forma que sairemos da pandemia? A população seguirá em um ritmo de
consumo anterior ou ainda mais acelerado?
Tenho escutado que o mundo
pós-Covid-19 não irá mudar, que voltaremos ao nosso normal e seguiremos com
nossos antigos hábitos e comportamentos. Por natureza e por exercício do
empreendedorismo, sou mais otimista.
Nesse contexto pós-pandemia,
imagino que o local ganhará importância nas nossas relações intra-espécie. Isso
não impede que o movimento antiglobalização ganhe força.
Pelo contrário, acho que a aversão
à globalização trará um sentimento de pertencimento e de cuidado do local. E
vice-versa. Comunidades locais poderão ganhar força.
As relações diretas, interpessoais,
serão menos rasas e menos descartáveis. O “slow food” se estenderá para o “slow
everything”.
O enfoque local mudará a forma como
serviços e produtos serão consumidos, enquanto que na perspectiva global haverá
uma redução do comércio e, infelizmente, um incremento de volume nas tensões
geopolíticas.
Por outro lado, eu espero que a
nossa relação com o planeta passe a ser menos predatória.
O uso desnecessário de recursos,
como viagens de negócios que poderiam ter seu objetivo alcançado com uma vídeo
chamada, ou a presença física no ambiente de trabalho, que nitidamente se
mostra dispensável para uma série de profissões, tende a diminuir.
Mais espaços abertos tendem
a ser criados, outros modais de transporte,
como as bicicletas, tendem a ser mais utilizados, repensando o uso excessivo decarros.
Mobilidade e transporte, turismo,
eventos, lazer, entretenimento serão completamente redesenhados
Finalmente, aposto que as relações
de consumo também serão reavaliadas.
Economia circular, impacto
ambiental, responsabilidade de fabricantes em relação a embalagens e descartes,
compartilhamento de diferentes categorias de produtos, redução do direito de
propriedade e adoção em massa do direito de uso e do dever de cuidar do bem
comum serão repensados.
Este é o mundo pós-Covid-19 que eu
espero não apenas encontrar, e sim, ao lado de empreendedores brilhantes e de
vocês, ajudar a construir.
Romero Rodrigues - sócio da Redpoint eventures e co-fundador do Buscapé
Fonte: coluna HSM