Diversas
notícias foram veiculadas no Brasil nas últimas semanas a propósito das
mudanças das recomendações americanas referentes aos tratamentos para o
colesterol (ver aqui). Sem dúvida, o excesso de colesterol
e o seu tratamento é um assunto de interesse público e de interesse do público.
Para o paciente-consumidor, a imprensa ocupa um lugar de destaque como fonte de
informação, portanto é notável o pouco destaque que os editores deram ao
assunto. E muito conveniente também observar o foco escolhido por alguns deles.
Na Folha
de S.Paulo, o doutor Dráuzio Varella escreveu um texto desafiador: “A agonia do colesterol“ (sábado, 30/11). O
médico oncologista começa o texto opinando: “Nunca me convenci de que essa
obsessão para abaixar o colesterol às custas de remédio aumentassem a
longevidade de pessoas saudáveis”. Linhas depois assegura que o sucesso das
estatinas (drogas que reduzem o colesterol) se deve a “uma crença que tomou
conta da cardiologia”. Uma semana depois, a editora de “Ciência e Saúde” do
jornal, Debora Mismetti, fez uma matéria intitulada “Dilema do colesterol“ para aclarar as dúvidas
que o colunista deixou na mente preocupada dos leitores.
O Correio
Braziliense não colocou nenhum jornalista próprio a trabalhar no assunto,
simplesmente comprou o texto pronto da France Presse. O título escolhido foi “Estados Unidos questionam a prescrição preventiva deremédios anticolesterol“ e foca na controvérsia. Coloca opinião já
no primeiro parágrafo: “Um novo guia clínico publicado nos Estados Unidos, que
recomenda ampliar a prescrição de medicamentos anticolesterol a milhares de
adultos para reduzir os ataques cardíacos e os acidentes vasculares cerebrais,
superestima o risco que corre grande parte da população”. O Grupo Estado, por
enquanto, veiculou apenas um texto – fraco – da Dow Jones Newswires com o
titulo “Lançadas novas diretrizes para redução de risco cardíaco“.
Cilene Pereira, da revista IstoÉ, outra que não parece concordar
completamente com o cenário de suspeitas, titulou “Uma revolução no ataque ao colesterol“; e a
matéria, equilibrada, põe foco no risco pessoal de cada um. Sem esquecer as
críticas, cita um profissional que apoia as mudanças e alerta: “Existem muitas
pessoas com chances substanciais de sofrer algum problema que não estão sendo
monitoradas por causa dos padrões anteriores”.
A
revista Veja foi longe na aceitação da nova proposta. No seu site, além
de uma matéria muito clara e completa assinada por Natalia Cuminale (“Saiba se você está no novo grupo de risco para doenças docoração“, que permite conhecer melhor os diferentes tipos de
remédios e o explica as vantagens das distintas terapias, é possível calcular o
próprio risco introduzindo os resultados do último check up.
Informação
útil
Qual
é a notícia que gerou atitudes jornalísticas tão distintas?
As
duas organizações mais importantes que se ocupam da saúde cardiovascular nos
Estados Unidos – The American College of Cardiology e The American Heart
Association – publicaram novas guias com significativas modificações ante as
anteriores. Uma das mudanças é fácil de entender: já não existiria mais uma
meta a atingir nos níveis do chamado colesterol ruim (LDL). Chega de cobranças
numéricas. Todos os pacientes com alto risco cardiovascular devido a diabetes
ou eventos cardíacos prévios, assim como aqueles com valores de LDL superiores
a 190 mg/ml, devem tomar remédios. Devem reduzir o colesterol ruim, sem buscar
uma meta. Segundo o relatório, não existe nenhuma evidência acerca de que
determinados “objetivos” de colesterol façam diferença.
Deve
ficar claro que a falta de metas não exime aos mortais de tomar os remédios.
Aliás, uma consequência das modificações do padrão americano é que as vendas
dos fármacos para reduzir o colesterol (estatinas) até aumentariam. E isso está
revoltando muita gente. Por quê?
A
proposta dos americanos, que pode ou não ser seguida no Brasil, é uma terapia
mais personalizada. Tentando resumir de maneira simples, parece estar claro
quem precisa tomar estatinas e quem não, mas agora existe um grupo
intermediário de potenciais usuários muito grande. O novo foco é identificar as
pessoas com risco aumentado e dar uma terapia de maior ou menor intensidade,
segundo o caso. Para saber quem precisa ou não, é necessário calcular o risco.
Há um calculador muito discutido. Segundo críticos do calculador de avaliação
de riscos, haverá muitas pessoas comprando o remédio sem necessidade.
As
decisões médicas nunca são simples. Se uma pessoa tem um 20% de risco, é
medicada e reduz esse número a 16%, isso é importante para ela? Ninguém sabe.
Esses 4% de redução podem ou não mudar a sua vida. É uma questão estatística.
Se o médico que faz a prescrição tem 25 pacientes na mesma situação, dez anos
depois terá prevenido um único evento. Isso é suficiente? “‘Sim, se o paciente
que continua vivo for eu”‘, disse um leitor nos comentários que se seguiram a
uma das matérias. Alguns definem isso como o marketing do medo.
Mesmo
assim, a proposta agora é ampliar o uso de medicamentos aos que têm um risco de
7,5 %, ou seja, colocar a linha dos que precisam ser tratados muito mais perto
da normalidade. Continuando o raciocínio anterior, um médico poderia ter quase
o triplo de pessoas medicadas, sem por isso aumentar o número de eventos
evitados. Uma ressalva importante: a nova cartilha deixa claro que continua
sendo verdade que o que mais aumenta a longevidade é o exercício físico, manter
o peso saudável e não fumar, propostas muito baratas e sem contraindicações.
Conclusões:
pode-se dizer que muito do que se acreditava sobre o assunto já não é mais
verdade; que os laboratórios, que já ganharam muitos milhões, vão ganhar ainda
mais; que fomos expostos a um grande experimento humano, em escala planetária,
porque não existiam evidências a favor das metas de tratamentos anteriores não
existiriam. Tudo isso é verdade. Porém, há razões para isso ter acontecido que
precisam ser averiguadas pelos que têm o hábito e a responsabilidade de dar
informação clara e útil – e diferenciar os fatos das crenças.
Perguntas
a fazer
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Como foram feitas as pesquisas?
A
equipe que fez a nova cartilha de recomendações utilizou um enfoque baseado na
evidência, o que permitiu iluminar um fato importante: as metas específicas de
colesterol não estão apoiadas sobre evidências sólidas. Os pesquisadores
desenvolveram uma série de questões-chave, conduziram uma revisão sistemática
de uma grande quantidade de ensaios clínicos, e fizeram um ranking de
evidências superando a crítica a estudos anteriores, que davam o mesmo peso a
informações que não tinham a mesma importância. Isso é ciência. Mesmo assim,
nem todos ficaram felizes. “Cada vez mais fica claro que quando apenas os
especialistas de uma área específica fazem um consenso, a visão de todo o
bosque fica limitada. Eles acabam avaliando o que chega para eles, no caso
cardiologistas, e não o que acontece de fato na população”, diz Marcelo
Levites, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família (Sobramfa).
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Quem pode me ajudar?
Na
hora de fazer uma matéria, a decisão talvez mais importante do jornalista é
decidir quem entrevistar. No caso das novas orientações, não há consenso entre
os especialistas: alguns antecipam exageros na prescrição, outros deficiências,
muitos temem a dificuldade do paciente de continuar a terapia sem referências
claras. Além da opinião, os entrevistados escolhidos vão apresentar diferentes
olhares segundo sua a especialidade. Um epidemiologista pode estar mais
distante do resultado clínico, mas conhecer melhor o peso das evidências e saber
a força dos resultados. Um cardiologista vai definir melhor os riscos a evitar.
O clínico geral terá uma visão mais abrangente. Logicamente é inocente pensar
que todos os profissionais de jaleco branco são imunes aos interesses, ou que
têm a capacidade crítica intacta. Os médicos são também alvos de publicidade, e
acreditam na propaganda.
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O que perguntar?
O
público consome matérias de saúde com um único objetivo: saber o que fazer. Mas
a nossa missão não é medicar o leitor/ouvinte/internauta. E é bom nunca
esquecer disso.
Também
não é possível carregar sobre as nossas costas a responsabilidade de achar a
“verdade”, talvez inexistente. Todo mundo sabe que a ciência avança destruindo
o seu próprio passado.
Esses
princípios são difíceis de manter no dia a dia. Acaso existe tarefa mais
difícil para um jornalista de saúde do que escrever e titular de maneira
atrativa as incertezas que apura?
O New
York Times, que faz debates periódicos sobre saúde na seção “When Medical
Experts Disagree” (Quando os especialistas médicos não concordam), tocou no
assunto das novas guias do colesterol divulgando varias opiniões. No texto “The Latest Study Isn’t the Final Word“ (O
último estudo não é a palavra final), por exemplo, os autores se dirigem aos
leitores da seguinte maneira.
“É tentador abraçar os últimos resultados como
uma verdade definitiva, mas na realidade a verdade não se baseia em um único
estudo, mas em um corpo de evidências. Uma vez divulgados, os estudos e as
recomendações novas são julgadas pela comunidade médica para uma dissecação
deliberada de suas fortalezas e debilidades no contexto dos conhecimentos
prévios. A análise rigorosa pode levar certo tempo. Como resultado, pode não
ser prudente atuar de maneira rápida quando uma informação médica nova é
anunciada.”
A
única certeza que vai ter o jornalista hoje é talvez aclarar que recomendações
não são obrigações, e não substituem o critério clínico do profissional que
avalia a totalidade de evidências para um paciente específico. Neste sentido, o
médico Dráuzio Varela dá, na Folha de S.Paulo, uma recomendação.
“Se você, leitor com boa saúde, toma remédio
para o colesterol, converse com seu médico, mas esteja certo de que ele conhece
a literatura e leu com espírito crítico as 32 páginas das novas diretrizes
citadas nesta coluna.”
Saudável
ceticismo
Há
muitas outras perguntas a fazer, importantíssimas, para aqueles veículos que
não oferecem apenas informação médica útil para o consumidor, mas ajudam nos
necessários debates da cidadania também nas questões referentes à vida.
Uma
pergunta válida sobre essa questão é quem financia o trabalho dos especialistas
que fazem as recomendações. O jornal The Boston Globe reportou que
aproximadamente a metade dos membros do comitê que redigiu as recomendações
sobre o tratamento do colesterol tinha laços financeiros com os fabricantes dos
remédios mais usados (estatinas). Isso não acontece apenas com este painel, que
aumenta o grupo dos doentes reduzindo o dos sadios, segundo a pesquisa de
Raymond Moynihan, “Expanding disease definitions in guidelines and expertpanel ties to industry: A cross sectional study of common conditions in UnitedStates“. A pergunta a seguir é se isso invalida as suas conclusões.
Este
assunto pode ser também o gancho para seguir o trabalho de ativistas que lutam
no mundo todo com ideias melhores do que atrapalhar o avanço da ciência. Muitos
deles têm o olho nos lobbies da indústria farmacêutica e não apenas nos
fabricantes das estatinas – a grande maioria das estatinas já está fora da
proteção das patentes. O que interessa agora é a próxima geração do mercado
farmacêutico.
Nesse
sentido, de cara para futuro, há muitas situações desejáveis. Que as últimas
etapas das pesquisas não sejam de responsabilidade dos fabricantes dos
remédios; que as agências sanitárias exijam mais e melhores pesquisas
comparativas de eficácia; que o preço das drogas seja um reflexo do custo de
desenvolvimento e não das despesas de marketing; que exista mais transparência
nos ensaios clínicos, com os dados de cada paciente individual disponível para
ser avaliado por centros independentes. A lista é muito mais extensa, e não há
ninguém na rua demandando tudo isso.
Pode-se
exigir também algo bem mais simples e fácil de entender: mais e melhores
pesquisas em tratamentos não farmacológicos. Porque um medicamento é como uma
porta que se abre: a gente entra muitas vezes sem saber o que há por trás dela.
Se você
jornalista e humano quer saber mesmo o que fazer com o seu colesterol, é
preciso de que seu lado jornalista estimule o debate transparente. E preciso
valorar com veracidade as vantagens e os riscos das terapias farmacológicas,
diminuir os custos dos tratamentos, evitar as armadilhas geradas pelos
interesses econômicos. Procurar o que há por trás de cada recomendação médica
que aparece na mídia, perguntar-se se há motivos ocultos para divulgar
inverdades, e não esquecer de que nem tudo o que falam os médicos, celebridades
ou não, é “fato”‘. Isso também é ”pensamento mágico”.
Fazer
tudo isto consome muito tempo. Cada jornalista tem que procurar o foco da sua
matéria – é assim que funciona a mídia independente. É um investimento na
qualidade e os editores têm de concordar que vale a pena entrar nos detalhes.
O
mais saudável? Manter o ceticismo e perguntar. É isso ou continuar na Redação
com atitude de “paciente”‘, simplesmente acreditando no médico.
Roxana
Tabakman - jornalista, autora de A Saúde na Mídia (Medicina para
jornalistas- jornalismo para médicos), Editora Summus, 2013
Fonte:
site Observatório da Imprensa