Pesquisas inúteis podem mudar
profundamente o nosso mundo
Quem
inventou a aviação? No Brasil, sabemos que foi Santos Dumont. No resto do
mundo, o consenso vai para os irmãos Wright. Na verdade, o que esses e outros
pioneiros fizeram no início do século 20 foi construir máquinas caras e
praticamente inúteis, que só voavam alguns metros. Provaram, porém, que voar
era possível.
A
aviação veio depois, e nisso os Wright tinham duas grandes vantagens: espírito
empresarial e indústria nacional capaz de realizar seus planos.
Outro
“voo de galinha”, que pode ter consequências ainda mais revolucionárias, foi
divulgado na revista Nature: a Google anunciou ter usado um computador quântico
para fazer em 3 minutos e 20 segundos um cálculo que o supercomputador mais
rápido do mundo levaria 10 mil anos para fazer.
O Google Quantum Computer custou milhões de dólares e
seu mérito é provar que a computação quântica é possível –
O
problema que esse computador tratou —identificação de padrões em sequências de
números aleatórios— não tem grande interesse prático. A IBM, competidora da
Google, apressou-se em afirmar que computadores clássicos poderiam resolvê-lo
em apenas 2,5 dias (mas não ofereceu fazê-lo...).
O
computador da Google custou milhões de dólares e é
praticamente inútil. Seu mérito foi provar que é possível.
Computação
quântica é uma das ideias mais fascinantes da ciência desde os anos 1980,
quando foi proposta por Paul Benioff e outros cientistas. Computadores
clássicos guardam e processam informação na forma de bits, unidades minúsculas
capazes de assumir apenas dois estados: 0 ou 1. Computadores quânticos tiram
proveito das propriedades bizarras da matéria descritas pela mecânica quântica
para realizar cálculos de modo muito diferente.
Uma
dessas propriedades é a “superposição”: as unidades básicas dos computadores
quânticos, chamadas qubits, podem assumir os dois estados, 0 e 1, ao mesmo
tempo! Isto lhes confere uma capacidade extraordinária para armazenar e
processar informação. Outra propriedade, ainda mais estranha, é o
“emaranhamento”: bits clássicos podem ser modificados independentemente uns dos
outros, mas os qubits estão ligados de tal modo que ações sobre qualquer deles
afetam todos os outros. Isso acelera os cálculos de maneira vertiginosa.
Essas
ideias foram desenvolvidas ao longo do século 20 por gerações de cientistas
cujo único objetivo era entender a natureza: é mais um exemplo de pesquisa
“inútil” mudando profundamente o nosso mundo.
O
novo computador quântico da Google tem apenas 53 qubits, exige uma instalação
de milhões de dólares e precisa ser mantido a 273º graus negativos (muito mais
frio que o espaço interestelar)! Em outubro, essa máquina fez em minutos um
cálculo que levaria 10 mil anos no supercomputador mais rápido do mundo.
Computadores
quânticos processam a informação em qubits, unidades básicas que tiram proveito
das estranhas descobertas da mecânica quântica para realizar cálculos de modo
diferente e vertiginosamente rápido. A possibilidade de construir esses
computadores foi aventada há quatro décadas. O problema é que qubits são
extremamente difíceis de fabricar e manter, já que são destruídos pelas
interações com o ambiente.
Enquanto
os engenheiros não resolvem as dificuldades práticas de se construir um
computador quântico funcional, os matemáticos vêm trabalhando para tornar o
projeto empolgante. Em 1998, fui palestrante do Congresso Internacional de
Matemáticos, em Berlim. A estrela do congresso foi o americano Peter Shor, que
apresentou a prova matemática de que computadores quânticos, quando existirem,
serão capazes de fatorar rapidamente números muito grandes.
Isso
é revolucionário, porque os principais métodos modernos de criptografia estão
baseados no fato de que fatorar números é um problema difícil para os
computadores clássicos. Em resumo, quem dispuser de computadores quânticos
poderá quebrar toda a criptografia atual...
Ainda
estamos longe. O maior número já fatorado por um computador quântico usando o
método de Shor foi apenas 21. Para ter utilidade prática, é preciso ser capaz
de fazer o mesmo para números com centenas de dígitos. E isso exigirá alguns
milhares de qubits. Porém, tal como os voos precários dos pioneiros da aviação,
o experimento da Google prova que um dia o sonho será realidade.
Obviamente,
os especialistas em criptografia já estão buscando novos métodos que possam
resistir até aos ataques quânticos. Também será necessário desenvolver novos
algoritmos de cálculo, adequados para as máquinas quânticas. Não vai faltar
trabalho para matemáticos e cientistas da computação...
E
a corrida está a todo o vapor, com gigantes como Google, Microsoft, IBM e Intel
empenhados em dominarem a tecnologia, e China, Estados Unidos e outros países
investindo maciçamente em pesquisa nessa área estratégica. E o Brasil?
Marcelo Viana - diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e
Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.
Fonte: coluna jornal FSP