Mia Couto fez a minha mãe reencontrar ex-namorado
de 26 anos antes
Fomos
a Moçambique para uma entrevista com o escritor e descobrimos que o ex tinha
virado ministro do país.
Estava de férias em Estocolmo, espremendo os
ouvidos para entender a explicação sobre o Museu do Vasa (Vasamuseet) no português
de Portugal.
Quando o wifi do ônibus de turismo voltou a funcionar, vi que
havia um email novo em minha caixa de entrada.
Ao ler o nome do remetente, não consegui segurar o
grito, que fez os passageiros se deslocarem de suas cadeiras pensando que algo
grave havia acontecido. Era um email do meu escritor preferido.
Voltando algumas casas da história: no primeiro livro que li de Mia Couto, já soube
que queria conhecê-lo.
Foi amor à primeira lida, igual àquelas paixões que
temos quando pensamos ter encontrado o amor de nossas vidas.
Eu sabia ter
encontrado meu autor predileto e mais: ele estava vivo. Não podia perder a
chance de conhecê-lo, como já tinha perdido de vista Clarice Lispector,
Graciliano Ramos e Jorge Amado.
Ainda que pensasse que seria para sempre um spam na caixa de
email desse homem, decidi me endereçar à Moçambique.
Me apresentei, disse de
minha admiração e perguntei se ele toparia uma entrevista. A resposta me chegou
em um sol de rachar de julho em meio ao "hop on hop off" sueco.
Acontece que, na minha família, a história com
Moçambique é mais antiga que a caixa de entrada do meu email, mais antiga ainda
que a minha primeira leitura do Mia Couto. Ela começou no doutorado da minha
mãe.
Lembra que comparei a sensação de ler a prosa
poética de Mia com amor à primeira vista? Pois bem, em uma sala de aula na
década de 1990, minha mãe viveu as borboletas no estômago sem abrir um livro,
apenas ao trocar olhares com um aluno estrangeiro.
Adivinhem de qual país?
Acho que a paixão por pessoas nascidas nesse território africano pode
ser genética (alguém explica isso?).
Eles namoraram por oito meses, e ele
voltou para sua cidade. Em uma época sem redes sociais e smartphones, perderam
o contato e moraram apenas na lembrança um do outro por exatos 26 anos. Mas o
mundo gira...
Em dezembro de 2019, eu e minha mãe fomos passar o
Réveillon na África do Sul e depois iríamos à Maputo para conhecer Mia Couto.
Até que minha mãe fala: “Sempre
tive vontade de conhecer Moçambique, meu ex falava tanto de lá”. Prontamente
respondi: “Vamos procurá-lo, faremos esse reencontro”.
Ela ruminou um pouco com receio de como aquela
procura, tantos anos depois, poderia soar. Assunto parcialmente encerrado.
Corta para 31 de dezembro na África do Sul.
Estávamos na fila do passeio para o Cabo da Boa Esperança quando
escutei, à minha frente, um casal moçambicano.
Seguimos junto àquele simpático
casal durante todo o passeio quando, em determinado momento, contei que iríamos
à Maputo dentro de poucos dias para a entrevista.
Não perdi a oportunidade de falar do ex-namorado da
minha mãe, porque eu acredito nas coincidências.
Vai que havíamos encontrado
alguém da família dele, em outro país, em uma fila para um lugar de nome que
carrega um bom presságio, Boa Esperança?
Disse nome e sobrenome do cidadão, e a pronta
resposta deles foi: “Conhecemos esse nome sim, mas não deve ser o mesmo, porque
o que conhecemos é muito importante em nosso país”. “Importante como?”, logo
perguntei. Passei a saber, segundos depois, que se tratava de um ministro de
Estado.
Era possível que o ex da minha mãe era a mesma
pessoa que falavam nossos amigos recém-conhecidos em uma fila de passeio no
último dia do ano? Sim, era ele.
Eu lembrava dele, em detalhes. Minha mãe teve
alguns namorados, mas não à toa era o único namorado dela que me recordava
—mesmo que eu tivesse 5 anos quando eles namoraram e tenha ido à casa dele
apenas uma vez (que, coincidentemente, era na rua em que moro hoje).
Chegando ao hotel, consegui o telefone dele e
convenci minha mãe a escrever.
Em poucos minutos, uma mensagem emocionada na
tela do celular apitava, daquelas que mostram que um carinho, quando existe,
não é suplantado por 26 anos de total ausência.
Essa não é uma história de reencontro amoroso
porque, como esperávamos, ele estava casado, com filhos e netos, mas o
reencontro dos corações não precisa recomeçar a história do ponto que finalizou.
E os acasos acabam?
Quando minha mãe disse ao casal
que iria à Maputo para que a sua filha entrevistasse Mia Couto, a resposta foi:
“Que maravilha, meu amigo Mia, almoçamos juntos. Se precisarem que fale algo
com ele, é só avisar”.
Olhei a tela ainda incrédula com aquela geometria dos
encontros que unia gerações, literaturas, continentes e paixões.
Conclusão: fomos para Moçambique e teve Mia Couto,
reencontro com antigo namorado e saída com os novos amigos moçambicanos feitos
na fila, quase uma grande família.
Contando essa história ainda me pergunto:
qual a probabilidade de um encontro entre você, sua mãe, um ex-namorado dela
—de 26 anos antes— e o seu escritor preferido em outro continente?
Acredito na força da paixão na leitura à primeira
vista, na força de um email que pode não virar spam e nos reencontros depois de
ausências distribuídas em silêncios.
Os acasos também moram nas memórias
despertas, aquelas que não se constrangem diante do adormecimento. O acaso une
tempos díspares, pessoas desconhecidas e continentes distantes.
Uma mensagem que você
envia do Brasil pode ser lida na Suécia, continuada na África do Sul e
acontecida em Moçambique.
BEATRIZ BRANDÃO - antropóloga, jornalista e roteirista, mora no
Rio de Janeiro.