Conheça acertos e erros históricos de 'The Chosen',
série que recria trajetória de Jesus
A riqueza de
detalhes e o ritmo de novela da narrativa exigem boa dose de criatividade.
Que o leitor me perdoe pela cabeça de católico, mas
para este escriba a tentação de abordar temas bíblicos na Semana Santa é quase impossível de
vencer.
Eis a razão pela qual gostaria de aproveitar o espaço, desta vez, para
uma brevíssima análise histórica de "The Chosen" ("Os
Escolhidos"), a popular série de streaming americana que está recontando a
trajetória de Jesus de Nazaré e seus apóstolos.
Por enquanto, estamos na quarta temporada (de um total projetado
de sete).
A riqueza de detalhes e o ritmo de novela da
narrativa exigem boa dose de criatividade, em especial no que diz respeito aos
detalhes da personalidade e da história pregressa dos discípulos do Nazareno
—coisas a respeito das quais os Evangelhos do Novo Testamento, em geral,
silenciam.
Os textos canônicos dizem, por exemplo, que Pedro tinha uma sogra
(ou seja, era ou tinha sido casado) e que ela foi curada por Jesus, mas não
fazemos a menor ideia de como era a relação dele com a esposa ou mesmo o nome
dela.
Outro ponto interessante a destacar é que, ao
tentar criar uma trama única a partir dos quatro Evangelhos, cada um dos quais
com sua própria história e perspectiva sobre Cristo, "The Chosen" retoma uma tradição cristã muito
antiga, cujo representante mais famoso leva o sonoro nome de
"Diatessáron" (algo como "a partir de quatro" em grego).
Composta por volta do ano 170 d.C. por Taciano, um erudito cristão da Assíria
(atual norte do Iraque, grosso modo), a obra tenta eliminar personagens
aparentemente duplicados e juntar os acontecimentos citados por Mateus, Marcos,
Lucas e João numa ordem considerada lógica.
(Na maioria das igrejas cristãs, a
ideia acabou não pegando, e Taciano chegou até a ser considerado suspeito de
heresia.)
Na aparência dos personagens, a série traz uma
bem-vinda ruptura diante da velha mania de Hollywood de retratar os habitantes
da Judeia e da Galileia como americanos ou europeus de olhos azuis.
Jonathan
Roumie, intérprete de Jesus e filho de um egípcio de origem síria e uma
irlandesa, muito provavelmente não ficaria deslocado na Nazaré do ano 30 d.C.
Um pouco mais dúbia historicamente é a presença de atores negros e de origem
indiana, mas sabemos que o alcance "globalizado" do judaísmo é um fenômeno
muito antigo, bem como as conexões de longa distância do Império Romano (moedas
de Roma já foram achadas até no Vietnã, por exemplo).
Curiosamente, porém, talvez o grande tropeço das
primeiras temporadas tenha a ver justamente com os romanos e com o papel do
vilão Quintus (Brandon Potter).
Pouca gente sabe que, como habitante da
Galileia, Jesus não cresceu sob ocupação romana direta.
A terra da família de
Cristo tinha seu próprio governante independente de origem judaica, Herodes
Antipas (20 a.C.-39 d.C.).
A situação era diferente na Judeia e sua capital,
Jerusalém, essas sim ocupadas por governadores romanos, como o célebre Pilatos.
Na Galileia, porém, os soldados que
Jesus e seus discípulos encontravam podiam muito bem não ter nada a ver
diretamente com Roma, sendo mercenários de regiões vizinhas, como a Síria, ou
até de lugares mais distantes (Herodes, o Grande, pai de Herodes Antipas, tinha
guarda-costas gauleses, por exemplo —"bárbaros" vindos da atual
França).
Quanto ao apóstolo Mateus, um publicano ou cobrador
de impostos, faz menos sentido imaginá-lo com soldados romanos em seu cangote
do que como funcionário de uma "empresa terceirizada" cobrando as
dívidas de alguém com um banco.
Era basicamente assim que funcionava a cobrança
de impostos naquele contexto —havia um valor exigido por Roma, e o resto do
dinheiro ficava nas mãos dos "empresários" que tinham conseguido
aquela concessão. Era, óbvio, a receita perfeita para cenas de corrupção e
extorsão.
Um último ponto: apesar das incertezas históricas
que cercam os Evangelhos, faz bastante sentido imaginar que a pregação de Jesus
e suas parábolas adotavam uma linguagem simples e direta, que dialogava
diretamente com o cotidiano de seus ouvintes.
Quanto a isso, "The
Chosen" acerta em cheio.
REINALDO JOSÉ LOPES -jornalista
especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de
Cabral".