Gilles Lipovetsky, que participará do Educação 360,
fala sobre a importância do ensino de qualidade para a garantia da mobilidade
social
O filósofo Gilles Lipovetsky: alerta contra crise das
instituições públicas -
O senhor tem falado sobre o
“desinvestimento” público e a perda de sentido das grandes instituições morais,
sociais e políticas. Como isso afeta os sistemas de ensino?
Já há alguns anos as instituições
públicas estão em crise, e as pessoas não confiam na sua legitimidade. Mas o
sistema educativo está relativamente protegido. Mesmo os jovens com menos
acesso à educação compreendem que a escola é necessária e a veem como sinônimo
de progresso. O problema é que os sistemas educativos funcionam bem para as
elites, mas não para os que nascem em situação desfavorável, não só no Brasil,
mas mesmo na França e até na Inglaterra. Há jovens que passam dez anos na
escola sem aprender a ler, que são incapazes de compreender uma linha de texto.
Como esperar que essa pessoa encontre um lugar na
sociedade?
Por isso a ideia atual de que a escola fracassa enquanto forma de ascensão
social. A educação precisa ser capaz de permitir que os mais fracos socialmente
participem de verdade do movimento democrático. E isso só se resolve investindo
nas primeiras séries, nas crianças bem pequenas, pois é algo que não se
consegue corrigir depois que crescem. Também é preciso dar atenção maior às
escolas em áreas mais pobres, investindo em classes menores e educação mais
individualizada para que essas crianças possam ter sucesso.
Seu livro mais recente fala sobre a
“civilização da leveza”, na qual tudo é virtual, lúdico e sem profundidade.
Como a educação se insere nesse contexto?
Fala-se de uma escola divertida, onde
os alunos não se entediem, mas aprender é difícil, exige esforço, treinamento,
repetição. Precisamos aceitar que educação não é algo passível de prazer
ininterrupto. Mesmo na civilização da leveza, nem tudo pode ser leve o tempo
todo. Precisamos formar pessoas que pensem, que criem, que façam o mundo
progredir. E não se faz o mundo progredir com leveza. É necessário uma escola
respeitosa, humanista e compreensiva — não leve. Provavelmente teremos que
rever todo o método pedagógico, corrigir aqueles que não falam mais à repetição
e à memorização, e criar estruturas rígidas para ajudar não só os alunos da
elite, mas todos a prosperarem. Temos necessidade de uma educação que
recomponha uma cultura geral, com currículo mais rico, que permita interpretar,
argumentar, expressar um pensamento racional e coerente. O vício da leveza faz
com que alunos trabalhem copiando e colando o que encontram na internet. O
resultado é o caos. Cabe à escola lutar contra o caos da facilidade.
Qual o papel da educação nesse
mundo onde o acesso à informação parece ilimitado?
Penso que a boa educação é aquela que permite à
pessoa distinguir e hierarquizar a informação. A escola deve oferecer
ferramentas que permitam fazer a distinção entre o valor do conteúdo de um blog
e um texto de Platão, entre a notícia de um jornal sério e a daquele no qual
não se pode confiar.
O conteúdo está disponível facilmente, mas e depois? O
conhecimento do fato é importante, mas não tanto quanto o do quadro conceitual,
que permite entender o que pesquisar e estudar. Quando se tem repertório
intelectual, a desorientação frente à oferta de informações é menor. Deve-se
ensinar a ser inteligente, pois a memória hoje está no computador, mas o
pensamento, não.
Onde fica a educação na era do consumo de experiências?
O ensino precisa fugir do modelo de consumo
experiencial, cada vez mais comum. Aprender não é experiência, é cognição.
É muito grave que a educação se transforme em
consumo, embora muitas pessoas a entendam assim. A escola é onde se forma o
espírito, é o que permite aos jovens acessar o mundo que eles não conhecem.
Você consome aquilo que conhece, que deseja, mas a educação existe para fazer
sair do seu próprio mundo, para abrir outros universos.
O senhor fala que a exigência absoluta da sociedade
do século XXI é a educação. Qual a responsabilidade do Estado nesse cenário,
principalmente em países de grandes desigualdades sociais, como o Brasil?
Educação não é um luxo, mas uma exigência em uma
cultura democrática e humanista. A escola deve oferecer as ferramentas
elementares, como ler, escrever e contar, mas também permitir o desenvolvimento
global do indivíduo.
Em uma sociedade muito desigual, com pessoas sem
acesso à educação e escolas de níveis muito diferentes, não vamos atingir esse
dever com pequenas medidas pedagógicas e, sim, com grandes escolhas políticas.
É responsabilidade do Estado desenvolver o sistema educativo de forma a
corrigir as desigualdades sociais.
Não para suprimi-las, mas para garantir que elas
não impeçam a mobilidade social. Uma política inteligente precisa fazer um
esforço considerável para impedir que a educação se transforme em bem de
consumo ou luxo.
O orçamento que os governos dedicam aos sistemas de
ensino precisa ser entendido não como gasto, mas como exigência, e é necessário
investir na qualificação dos professores. Sem dinheiro e sem educadores
competentes, não há escola de qualidade. A educação deve ser para todos, e é um
perigo para o bem democrático que seja absorvida pela força do dinheiro.
Fonte: site O GLOBO