O pai do
Chico
Sérgio Buarque de
Holanda, saindo com a mulher e amigos nas noites de sábado no Rio de Janeiro,
tinha um meio infalível de conseguir uma boa mesa num restaurante. Chegando-se ao maitre
dizia: “Sou o pai do Chico!” Palavras mágicas que, testemunhou Raymundo Faoro,
faziam com que de imediato providenciassem um lugar para o historiador e seus
convivas. O próprio Sérgio Buarque, cujo centenário de nascimento comemora-se
no dia 11 de julho, divertia-se com aquilo, comprovando assim a eficácia de uma
das suas teses famosas: a da inata cordialidade do homem brasileiro.
A cordialidade....a
lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por
estrangeiros que nos visitam, representam com efeito um traço definitivo do
caráter brasileiro
Sérgio Buarque de Holanda – Raízes do Brasil, 1936
Quando ele a defendeu,
nos idos dos anos trinta (é o 5º capitulo do Raízes do Brasil, publicado em 1936),
desabaram críticas. Para os integralistas, os fascistas brasileiros de então, a
concepção dele era desvirilizante, pois eles preferiam um varonil bandeirante
como característica nacional. Alguém como Domingos Jorge Velho ou Pai Pirá,
descritos na Marcha para o Oeste de Cassiano Ricardo, paulista como
Sérgio, editado em 1940, uns fura-matos que, com trabuco na mão, facão na
cintura e muita crueldade, enfiando-se pelos sertões, dilataram as fronteiras
nacionais no peito e na raça.
Para os comunistas, ao
revés, sempre cultivando a revolta, a insurgência das massas, a ideia da
cordialidade cheirava a submissão, a conformismo, a conluio com as oligarquias.
O tipo ideal deles era o Cavaleiro da Esperança exaltado por
Jorge Amado, em edição de 1942, o herói a cavalo que, com pouca munição e muita
coragem abalara fundo o agreste injusto e bárbaro, como fizera Luís Carlos
Prestes com sua coluna rebelde. Mas assim era Sérgio Buarque, avesso aos
extremos, sentia-se mais seguro nas sendas do liberalismo.
Os tipos
ideais
Historiador e amante da
literatura, entre os alemães que então estavam em moda, decidiu-se por Max
Weber e por George Simmel, textos de quem ele privou diretamente quando da sua
estada na Alemanha entre 1929-1930. Daí a preocupação dele, recorrendo à
sociologia weberiana, em identificar entre os ocupantes do Novo Mundo os “tipos
ideais”, cunhando então as figuras do semeador e do ladrilhador, para melhor
distinguir a colonização lusitana da espanhola.
Ao contrário de Gilberto
Freyre, que exaltara a adaptabilidade do português no trópico, Sérgio Buarque
queixou-se veemente da má vontade deles para com as letras, para com a imprensa
e a educação, deixando o Brasil colonial mergulhado por três séculos numa
ignorância estratégica. Viu-os como simples semeadores que mal queriam sair do
litoral, os “caranguejos” do Padre Antonil, feitores criando arraiais e
vilarejos ao deus-dará, espremidos por latifúndios gigantescos, bem ao
contrario do ladrilhador espanhol que , este sim, embrenhou-se no coração da
América, ocupando-a com cidades planejadas, abrindo escolas, gráficas e
universidades, desbugrando o Novo Mundo. Atribuiu a eles, aos lusos, este
nefasto gosto nosso pelo palavreado sem freio, sonoro mas nem método, o cultivo
da inteligência como ornamento, sem aplicação útil, a busca bocó pelo anel de
grau, a “equivaler a autênticos brasões de nobreza.” E, claro, o pavor à
técnica e às artes mecânicas em geral, vistas sempre como atividades
inferiores, indignas de um homem de bem. Para Sérgio Buarque, o momento crucial
da historia social do Brasil dera-se com a Abolição.
Um rio
moroso, mas que flui sempre
A partir de 1888, com a
abolição, desencadeara-se uma revolução silenciosa rumo a um progresso material
e moral, fazendo com que os demais acontecimentos políticos nacionais ( tal
como a Revolução de 1930, que ele, como paulista, não devotou simpatias), não
passassem de tumultos e afobações inconsequentes. Viu o Brasil, desde a Lei
Áurea, movendo-se como um grande rio de planície, que, no seu fluir, arrasara a
casa grande & senzala, deslocando a sociedade brasileira do mundo rural
para o mundo urbano, arrastando em seu lento cataclismo o Império, apagando com
isso os vestígios do nosso passado ibérico. Estava em formação algo novo, uma
alquimia ainda pouco conhecida, talvez ilusoriamente americano, dominado pelas
cidades, que, rompidas com a antiga ordem agrária, reclamavam agora sua
soberania, a querem vida própria, a terem a primazia de tudo. Porém, o grande
drama, persistente, ainda se impunha.
Como, inquietava-se
Sérgio Buarque, implantar uma ordem e uma cultura europeia num território tão
vasto e tão estranho aos ditames da razão e do método? Pois, como ele assegurava,
“somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”, tendo contra nós um outro
clima e uma outra paisagem totalmente estranha a nossos antepassados. E, além
disso, descendíamos de dois países bem pouco europeus, Portugal e Espanha, que
eram destacados amantes do personalismo, chegando as raias da anarquia, avessos
à instituições solidárias, o que levava à frouxidão da estrutura social e à
falta da hierarquia organizada. Desafio titânico que repousa nos ombros
estreitos de todos nós. Ao comentar o destino que previa para os integralistas,
uma força política nos anos trinta, foi lapidar e profético ao dizer que eles,
como qualquer outro partido que representava interesses ou de ideologia, se
estiolariam, pois “a tradição brasileira nunca deixou funcionar os verdadeiros
partidos de oposição”.
Voltaire Schilling – gaúcho de Porto Alegre, professor e escritor,
leciona História há mais de 30 anos em diversas instituições de ensino, é
colaborador e colunista do jornal Zero Hora de Porto Alegre.