Por que eu quero receber cuidados paliativos?
Na CPI da Covid, temos escutado barbaridades sobre uma área da medicina
conhecida como cuidados paliativos. Para quem sentiu na pele os benefícios de
uma abordagem paliativista, escutar desinformações desse tipo é uma facada no
peito.
Ressalto que paliativo não é uma
gambiarra que você faz para remendar algo que está errado.
Também não se trata
de jogar a toalha, desistir do que seria, supostamente, bom. O termo
deriva do latim pallium e significa cobrir com manto.
É o
manto protetor que simboliza o cuidar que faz parte do olhar proposto pelos
médicos paliativistas.
Em 1990, esse termo foi adotado e
definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os cuidados paliativos entram em cena
quando um paciente recebe o diagnóstico de uma doença ameaçadora da vida.
Ele será amparado por uma equipe multidisciplinar, formada por
médicos, enfermeiros, fonoaudiólogos, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes
sociais e assistentes espirituais que discutem caso a caso de forma integrada e
personalizada.
Olha-se para o paciente como uma pessoa (e parte de um núcleo
familiar) e não como uma doença, como costuma-se dizer.
Em uma das reportagens que fiz, me
chamou atenção uma equipe que estava discutindo o sonho do paciente naquela
noite.
Refletiam sobre como esse sonho revelava o medo da morte e a
complexa relação com os familiares que o visitavam na enfermaria. Em uma fase
final desse cuidado, realiza-se desejos, intermedia-se reconciliações.
Tudo
isso não está em uma prescrição médica de uma abordagem convencional, mas ajuda
no controle da dor, do stress, da qualidade de vida. Até seu último segundo.
Um dos princípios dos cuidados
paliativos é não usar tratamentos abusivos que tenham mais impacto negativo do
que positivo na qualidade de vida do paciente. Permeia o conceito da
ortotanásia, que é deixar a morte ocorrer naturalmente e não tentar prolongá-la
a qualquer custo com o uso das tecnologias disponíveis.
Seguimos o direito de
autonomia e escolhas. A ortotanásia não é essa eutanásia que estamos escutando
na CPI. Comparar cuidados paliativos à eutanásia é um equívoco enorme.
Orto significa correto e
thanatos, morte. Ela se opõe à distanásia, que é o prolongamento da
vida com a ajuda de aparelhos respiratórios ou procedimentos invasivos como a
entubação.
Apesar de serem protocolo em diversas UTIs pelo país, são uma
opção, uma escolha que o paciente e seus familiares têm o direito de tomar.
Muitas pessoas não sabem disso e são levadas à uma distanásia sem
compreenderem que se trata de uma escolha.
Os paliativistas são reconhecidos por
sua sabedoria no controle da dor e na comunicação de notícias delicadas. Porque
eles entendem a importância disso e se preparam para conversar com uma família,
acolher suas inseguranças e anseios.
Recebi o depoimento da bioeticista
Luciana Dadalto, que reproduzo abaixo. Ela é doutora em Ciências da Saúde.
Advogada especialista em Direito Médico e da Saúde. Administradora do
portal Testamento Vital e coordenadora
do livro “Cuidados Paliativos: aspectos jurídicos”.
A ilustração de Beatriz Martín Vidal,
que acompanha esse texto, é uma sugestão de Luciana. Ela a usa em aulas sobre
cuidados paliativos que ministra em congressos, pós graduação e palestras.
Luciana vê, nesta imagem, cuidado.
Os cuidados paliativos trazem essa
poesia, essa sutileza, e a abertura de espaço para interpretações.
Respeita-se o tempo de cada um, nossa visão de mundo e as escolhas que
consideramos serem melhores para nós, a partir da sabedoria que a medicina, e
da saúde tanto física quanto mental, possa, oferecer.
O título que Luciana colocou no seu
texto é “Eu Quero Receber Cuidados Paliativos”. Eu tomo a liberdade de já me
incluir nessa afirmação. Eu também!.
Boa leitura! E vamos em frente nessa
busca por uma maior qualidade de vida. Até seu último segundo.
CAMILA APPEL - Escritora, autora de teatro e redatora de TV
Eu quero receber Cuidados Paliativos!
Imagine que haja um tratamento para
uma pessoa gravemente doente que melhore a qualidade de vida, diminua a
depressão, a possibilidade de que o paciente precise ser internado e aumente a
sobrevida. Se você estivesse gravemente doente, gostaria de recebê-lo?
Se você tiver respondido sim, saiba
que esse “tratamento” já existe e se chama Cuidados Paliativos. Saiba ainda que
ele é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como um Direito Humano.
Saiba que ele encontra respaldo na Constituição Federal do Brasil. Saiba que
ele é a melhor chance de você ser cuidado como pessoa e não como um corpo
doente. Saiba que ele garante dignidade. Saiba que ele busca combater o
sofrimento. Saiba que ele protege os pacientes de cuidados inadequados. Saiba
que ele apoia a autonomia do paciente. Saiba que ele acolhe a família.
Ao redor do mundo os Cuidados
Paliativos são uma abordagem estigmatizada, pois em sociedades acostumadas com
a cura, a ideia de uma prática de saúde que visa cuidar do sofrimento de
pessoas com doenças graves é, frequentemente, deturpada. Frases como “não há
mais o que fazer”, “a luta foi perdida”, “não tem solução” são constantemente
associadas aos Cuidados Paliativos e produzem um enorme desserviço para
população que acaba compreendendo essa abordagem como contraponto à abordagem
curativa e não como complementar.
O teste que eu trouxe no primeiro
parágrafo proposto Sean Morrison e Mireille Jacobson (2021), dois
geriatras paliativistas estadunidenses, com o objetivo de sensibilizar o Poder
Público, a imprensa e a sociedade civil para a importância dos Cuidados
Paliativos e demostrar que quando compreendemos o conceito, é difícil sermos
contra a abordagem.
Em contrapartida, quando não
compreendemos o conceito, é fácil seguir o senso comum.
Foi exatamente isso que
assistimos e lemos nos últimos dias no Brasil: os Cuidados Paliativos sendo
utilizados macabramente para nomear supostas práticas antiéticas, imorais e
ilícitas ocorridas dentro dos hospitais da Prevent Sênior, com o alegado apoio
de agentes do Governo Federal e do Conselho Federal de Medicina.
Ao contrário do que tem sido
divulgado por alguns profissionais que trabalham na operadora de saúde Prevent
Sênior e/ou por alguns políticos, os Cuidados Paliativos não são indicados
apenas para pessoas que estão morrendo, não aceleram a morte, não são sinônimos
de abandono terapêutico, nem de suspensão de suporte, muito menos de economia
de custos.
Em maio de 2020, a Organização
Mundial de Saúde publicou o documento “Manejo Clínico da Covid”
conceituando a abordagem paliativa e recomendando-a para pacientes com
covid-19:
“Os cuidados paliativos são uma
abordagem multifacetada e integrada para melhorar a qualidade de vida de
pacientes adultos e pediátricos e suas famílias que enfrentam os problemas
associados a doenças com risco de vida como a Covid-19.
Concentram-se na
prevenção e no alívio do sofrimento por meio de identificação, avaliação e
tratamento de estressores físicos, psicossociais e espirituais. Incluem, mas
não se limitam aos cuidados em fim de vida.”
Desde então, inúmeras pesquisas
científicas foram publicadas evidenciando a melhoria da qualidade de vida e o
aumento da sobrevida de pacientes com covid-19 que receberam Cuidados
Paliativos.
Portanto, não podemos aceitar que uma abordagem clínica reconhecida
internacionalmente e aplicada em dezenas de países do mundo seja usada para
justificar práticas que não tem qualquer semelhança com os Cuidados Paliativos
ou para nomear possíveis crimes cometidos.
Na abertura da sessão da CPI de
29.09.2021, o senador Humberto Costa leu um posicionamento escrito pela
Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP).
Neste a ANCP deixa claro a
legalidade e a ética da abordagem paliativa – no Brasil e ao redor do mundo – e
trata-se de uma atividade que merece respeito “não só aos seus profissionais,
como principalmente aos pacientes e aos seus familiares que, ao serem atendidos
por equipes comprometidas, são os maiores beneficiados, conforme apontam
diversos estudos internacionais”.
No dia 09.10 é comemorado o Dia
Mundial dos Cuidados Paliativos e o lema desse ano é “não deixe ninguém para
trás.”
É exatamente isso que os Cuidados Paliativos fazem com maestria, acolhem,
escutam, cuidam, aliviam…. TODOS, sem distinção.
E, para que os paliativistas
brasileiros continuem trabalhando com ética e dentro da legalidade, cuidando de
todos os que precisam, nós, sociedade civil precisamos exigir que os Cuidados
Paliativos sejam respeitados.
Do contrário, quando precisarmos deles, corremos
o risco de sermos deixados para trás.
Eu quero receber Cuidados Paliativos
quando e se eu precisar. E você?
- A
OMS ainda destaca, nos princípios gerais, que os Cuidados Paliativos
buscam:
- Fornecer alívio para dor e
outros sintomas estressantes; através de medicamentos e abordagens não
farmacológicas
- Reafirmar a vida e entender
a morte como um processo natural em condições de doença irreversível;
- Integrar os aspectos
psicológicos, sociais e espirituais ao aspecto clínico de cuidado do
paciente;
- Elaborar plano de cuidados
alinhados aos desejos e valores do paciente, favorecendo o exercício
desua autonomia;
- Não acelerar o processo de
morte, prática proibida em nosso meio, conhecida como eutanásia;
tampouco retardá-lo de forma artificial e com sofrimento, prática
chamada de distanásia;
- Oferecer um sistema de apoio
para ajudar a família a lidar com a doença do paciente, em seu próprioambiente;
- Oferecer um sistema de
suporte para ajudar os pacientes a viverem o mais ativamente possível
atésua morte;
- Usar uma abordagem
interdisciplinar para acessar necessidades clínicas e psicossociais dos
pacientese suas famílias, incluindo o aconselhamento e suporte ao luto;
Os Cuidados Paliativos podem ser oferecidos conjuntamente às medidas que
tratam especificamente a doença, como a quimioterapia e a radioterapia no
caso do câncer. E deve ser realizado nos diversos ambientes de cuidado,
desde a residência até os hospitais, incluindo os CTIs. O paciente é
avaliado de forma ampla, considerando suas dimensões física,
psicológica, social e existencial, bem como seus valores pessoais e a
partir daí são propostas intervenções baseadas na ciência, que façam sentido para aquela
pessoa específica. Dependendo do caso e da fase de evolução da doença podem ser implementadas
medidas mais ou menos invasivas. De acordo com o Atlas dos Cuidados
Paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos publicado em 20191,
existem no país 191 serviços especializados. Além disso, esta prática
é reconhecida pela Associação Médica Brasileira, que concede Título de
Área de Atuação a profissionais
habilitados desde 2011.É uma atividade que merece respeito não só aos
seus profissionais como, principalmente, aos pacientes e seus familiares
que, ao serem atendidos por equipes comprometidas, são os maiores
beneficiados, conforme apontam diversos estudos nacionais e
internacionais. Apesar de todos os avanços, pacientes por todo país ainda enfrentam
falta de assistência relacionada aos Cuidados Paliativos e o uso
inadequado do termo é um desserviço ao nosso sistema de saúde, a seus
profissionais e usuários. No dia 9 de outubro profissionais comemoram em
todo o mundo o Dia Mundial de Cuidados Paliativos, com o objetivo de
conscientizar a opinião pública sobre a relevância do assunto. Esta
data,inclusive,constanocalendáriodoMinistériodaSaúde3.
Otemadoanode2021é:“Não deixe ninguém para trás – Equidade no acesso
aos Cuidados Paliativos”2. O acesso ao atendimento de maneira equitativa
é tão relevante, que também consta na Agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas.
LUCIANA
DADALTO - doutora em Ciências da Saúde.
Advogada especialista em Direito Médico e da Saúde