Perdi um amigo que me ajudou a lutar nos dias mais
difíceis
Escrevo em choque
pela descoberta de que aquele homem tão amável e humano já não está mais aqui.
Fazia tempo que eu não tinha notícias dele. Ficamos
amigos um tempo depois que saí da minha primeira internação.
Ele era psiquiatra na clínica em que eu estava e lá exerceu um papel muito
importante para mim.
Fiquei feliz ao receber a notificação de seu aniversário,
por meio do Facebook, logo de manhã, quando peguei o celular. Resolvi entrar
para mandar parabéns.
Na página, em vez de cumprimentos, havia homenagens: ele
tinha morrido no final do ano passado.
Escrevo tudo isso meio em choque porque ele foi um
apoio num momento muito difícil da minha
vida. Não sei muito bem expressar o que senti.
Passou um filme na
minha cabeça (um clássico quando a gente sabe que alguém morreu, mas nem por
isso um clichê).
Na primeira noite da internação, tive dificuldade
para dormir e fiquei lendo ao lado da sala dos médicos. Tudo me parecia
nebuloso, incerto, triste.
Ele se aproximou, estava de plantão, e eu tinha
certeza de que ia levar uma bronca por não estar na cama. Mas não.
Paulo me perguntou o que eu estava lendo e por que
estava internada. Se mostrou humano, o primeiro a me passar um calor que não
senti em nenhum momento naquele dia infernal.
É comum, pelo menos aconteceu
comigo em todas as internações pelas quais passei, que as pessoas que trabalham
na clínica tratem mal os internos.
Eu entendo, pelo menos no meu caso: alcoólatra na ativa,
era muito manipuladora e usava da sedução para conseguir as coisas —
não falo da sedução sexual, que é a primeira coisa que nos ocorre quando vemos
a palavra.
Não, aquela sedução dos sorrisos e piscadelas invisíveis de
cumplicidade.
Numa clínica, todos têm expertise desse traço dos internos e
precisam se blindar.
Naquela noite, conversamos um pouco. Fiquei
aliviada e consegui dormir. O dia seguinte, a primeira manhã na internação, foi
puxado.
Acordei com a sensação de não saber onde estava, até que aos poucos fui
me dando conta. Eu tinha chegado ao começo do fim de uma adicta: a internação.
Não tinha fome, não tinha vontade de nada, não via pessoas sorrindo pra mim.
Mas fui em frente e comecei a comer um
pouco porque era obrigada. Paulo entrou, acenou para mim e disse:
"Aguenta firme, menina." Entendi que seu plantão tinha acabado.
Aquela semana na clínica foi difícil, dias muito
solitários, e eu fiquei esperando pelo plantão dele, que eu achava que iria me
tranquilizar.
De fato, quando ele apareceu, foi logo perguntando: "Você
ainda está aqui?" O dono da clínica tinha me impedido de sair (uma longa
história sobre clínicas de recuperação, conto mais outro dia). Paulo lutou pelo
meu caso. Prescreveu antietanol e
liberou minha saída.
Comecei a engrenar, entrei em recuperação e muito
tempo depois daquela primeira internação eu o encontrei por acaso, na rua.
Morávamos no mesmo bairro.
E, como já não havia um elo paciente/ médico,
ficamos amigos. Marcamos café, almoço, essas coisas.
Como disse, eu estava entrando nos eixos. Ele,
sempre muito amável, muito humano, ao contrário, atravessava momentos bem
críticos e começou a beber demais.
Além da bebida, passou a tomar comprimidos em excesso. Tenho áudios dele com a
voz mole, falando coisas sem sentido.
Nos distanciamos, e eu nunca mais entrei
no Facebook por medo das fotografias e das coisas que já escrevi naquela rede
social.
No dia do aniversário dele, entrei feliz para
mandar mensagem, saí triste com a notícia de que ele se foi. Parece que foi do
coração. Um homem muito sensível que talvez não tenha aguentado o tranco da
vida.
Não sou nem eu que falo isso, ele me dizia que a vida era muito pesada
para ele.
E ela é, mas tenho cada vez mais convicção de que
quem sente demais não pode se entorpecer, muito pelo contrário. Precisa buscar
a lucidez.
Os alteradores de humor prejudicam o emocional, misturam a
capacidade de discernimento. Hoje foi um dia triste, perdi um companheiro que
me ajudou a lutar e que, tenho certeza, ajudou muitas outras pessoas também.
ALICE
S. – Vida de Alcólatra, jornal FSP