Mãe que é mãe fica com os filhos?
A ciência é, por força, contraintuitiva. Caso contrário, trata-se de senso comum. Ela nos permite entender que, embora vejamos o Sol emergir de um lado do horizonte e desaparecer do outro, a Terra não é o centro do universo, tampouco é um pires. Sustentar essas ideias publicamente levou muita gente para a fogueira, numa tentativa vã de barrar a maior ferramenta humana: a reflexão. Nada mais atual. Sigamos.
Participei de uma mesa sobre apoio psicológico à pessoas que sofreram perdas gestacionais. Ao meu lado, estava a representante de uma ONG portuguesa, que atendia essas mães em hospitais e consultórios. Quando perguntei se a equipe atendia mulheres que haviam feito aborto eletivo, permitido em Portugal, não só ouvi um sonoro “não!”, como percebi o olhar de perplexidade. Decidi mudar, na mesma hora, minha exposição partindo da pergunta: o aborto eletivo não implica em luto e cuidados?
Diante de mulheres que sofrem por terem feito abortos, por terem entregado seus bebês em adoção ou por perderem a guarda de seus filhos, a pergunta se impõe. Merecem cuidados?
Uma gari desempregada, cuja mãe cuida do primeiro filho no Piauí, engravida do segundo quando chega à São Paulo. Migrou para cá na esperança de conseguir trabalho e mandar dinheiro para a família. Os métodos contraceptivos caros, inacessíveis, a recusa do companheiro em usar preservativo ou, simplesmente, o fato de que não há método 100% seguro transformam a vida sexual em gravidez inoportuna. Então, estou diante dessa mulher que, como eu, um dia desejou ter dois filhos e vê-los crescer em segurança ao lado de sua família. O primeiro ela precisou deixar, justamente na tentativa de sustentá-lo, o segundo ela entregará aos encargos de desconhecidos pois, nem ela, nem sua mãe podem arcar com mais um. E o que ela me diz chorando? Que gostaria de poder ficar com ele. A escolha aqui não se baseia em desejar ou não o seu segundo filho, mas em fazer a opção salomônica de enviá-lo a uma família desconhecida, que lhe ofereça casa, comida e escolaridade, a mantê-lo com ela na rua, pedindo nos faróis.
Outra mulher não suporta a ideia de deixar um filho sabe-se lá com quem e teme que o pior lhe aconteça. Em Portugal, ela teria direito a um aborto legal e bem assistido. Ainda assim, não significa que não desejasse ser mãe.
Você dirá, “mãe que é mãe” não se separa do filho sob nenhuma circunstância e enfrenta frio e fome para estar ao lado do seus. A mãe que vive nas ruas, cujas crianças estão expostas a todo tipo de violência e privação, precisa que seus filhos lutem pela sobrevivência ao lado dela. Não existe nenhuma chance de que essas crianças tenham acesso à vida escolar. Para elas, escola e cidadania estão tão longe quanto Marte. Ainda assim, muitas lutam pelos seus.
A depender do senso comum, esses casos dariam prova de que a mulher se viu livre do filho que a estorvava e, portanto, deve estar aliviada. Por outro lado, as gravidezes planejadas e assumidas teriam algum selo de garantia de final feliz. Há mulheres que têm condições de criar, mas não o desejam e estão em seu direito de decidir. Mas decisões dessa magnitude não são tomadas sem custo psíquico e social. Oferecer escuta é o mínimo que temos a fazer, mesmo que elas possam declinar da oferta.
A mulher que faz aborto eletivo, que entrega em adoção ou que perde a guarda não precisa de cuidados? Certamente, é das que mais precisa. Feliz Dia das Mães a todas.
Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.
Fonte: coluna jornal FSP