Para onde vai o dólar?
Política econômica firme,
instituições sólidas e transparência são o caminho para o Brasil flutuar com a
moeda dos EUA, sem jamais naufragar por causa dela
O dólar vem perdendo valor nos últimos
meses, embora ainda sustente níveis historicamente elevados.
Em particular, nos últimos três anos, o dólar se descolou dos seus fundamentos
históricos, embora outros ativos denominados na moeda (ações, por exemplo)
tenham ganhado ainda mais relevância.
Usualmente, o ouro costuma ter correlação negativa tanto
com o dólar quanto com as taxas de juros dos títulos públicos americanos.
Já o
dólar tende a se valorizar quando os juros americanos sobem, especialmente se o
movimento estiver relacionado a um aperto monetário do Fed, banco central dos Estados Unidos.
Apesar do avanço nas transações com a moeda
chinesa, das moedas digitais e da busca por multipolaridade financeira, a hegemonia cambial dos EUA persiste.
Nas
transações financeiras (pelo sistema de trocas de valores entre bancos, o
Swift) e de comércio internacionais são cerca de 50%; 88% das transações nos
mercados cambiais; e 58% das reservas dos bancos centrais.
Para países como o
Brasil, isso tem consequências relevantes —tanto econômicas quanto
institucionais.
Essa dominância se expressou com particular força
em 2022, quando o Federal Reserve adotou seu ciclo mais agressivo de aperto monetário desde os anos 1980,
elevando os juros de forma acelerada para conter uma inflação que superava os
9% ao ano.
O diferencial de juros frente a outras economias desenvolvidas —como
a zona do euro e o Japão— atraiu capitais para os ativos norte-americanos,
valorizando o dólar em escala global.
Ao mesmo tempo, choques geopolíticos como a guerra
na Ucrânia, os lockdowns na China e a crise energética europeia intensificaram
a busca por segurança, o chamado flight to quality, que costuma beneficiar
moedas de reserva como o dólar. Países emergentes, como o Brasil, sofrem a
pressão sobre suas taxas de câmbio.
A economia global ainda gira em torno,
majoritariamente, das transações com o dólar, e o mercado de capitais associado
a ativos em dólar continua sendo, de longe, o mais profundo e completo do
mundo.
Contudo, com déficits gêmeos (nas transações correntes e nas contas
públicas dos EUA); sanções contra ativos russos dentro do Swift;
e aumento de tarifas sobre produtos importados, os EUA vêm vivenciando o
enfraquecimento do dólar. Isso seria uma tendência? Em que velocidade se espera
que ocorra?
No seu livro "King Dollar", Paul Blustein
reconstitui como os EUA, desde a ruptura do padrão-ouro em 1971, passaram a
usufruir de um privilégio singular: emitir a moeda que o mundo inteiro deseja
manter.
Kenneth Rogoff, em "Our Dollar, Your
Problem", reforça esse diagnóstico com argumentos estruturais.
A hegemonia
do dólar não se deve apenas à confiança internacional, mas a pilares concretos:
a liquidez dos mercados americanos, o sistema jurídico confiável e a ausência
de concorrência real.
O euro ainda carece de integração fiscal. O yuan opera
sob controle de capitais. As moedas digitais são promissoras, mas ainda
marginais.
Nesse cenário, o dólar estabelece o que Rogoff
chama de "exorbitante assimetria": enquanto os EUA definem sua
política monetária olhando apenas para sua economia, o resto do mundo é forçado
a se adaptar —acumulando reservas em dólar, dolarizando contratos e vivendo sob
risco cambial constante.
O Brasil conhece bem esse jogo. Desde que adotamos
o tripé macroeconômico —metas de inflação, câmbio flutuante e responsabilidade
fiscal— temos convivido com a volatilidade do real, muitas vezes desconectada
dos fundamentos domésticos.
Nos anos 2000, o Banco Central acumulou reservas,
aproveitando o ciclo positivo de commodities. Saímos de menos de US$ 20 bilhões
em 2003 para mais de US$ 350 bilhões em 2011.
Foi uma estratégia defensiva
bem-sucedida. Mesmo assim, qualquer movimento do Fed gerava pressões imediatas
sobre nossa moeda e nossos ativos —como no chamado taper tantrum de 2013,
quando o mercado reagiu ao anúncio de redução de uma política de estímulo
monetário nos EUA.
A tentação, nesses momentos, é intervir nos
mercados, comprando ou vendendo a divisa. Mas Blustein mostra como tentativas
recorrentes de controlar o câmbio frente ao dólar resultaram em colapsos
abruptos —da Ásia em 1997 ao Brasil pré-1999.
E Rogoff alerta: com o dólar no
centro, os países têm pouca margem para tentar dirigir sua taxa de câmbio sem
correr riscos mais sérios.
A economista Gita Gopinath, ex-FMI, reforça essa
tese ao propor o conceito de "paradigma da moeda dominante". Em seus
estudos, ela mostra que o dólar não apenas domina reservas e finanças, mas
também a precificação global de bens e serviços.
Mesmo os acordos comerciais
entre países que não envolvem os EUA são frequentemente denominados em dólar.
O resultado disso é que as moedas locais perdem
parte da função de ajuste. A eficácia da política monetária diminui. E o
câmbio, mesmo flutuante, se torna refém de decisões alheias à realidade
doméstica.
O sistema global está mudando? Talvez. Rogoff
aposta em uma transição para um modelo mais multipolar —com maior espaço para o
euro, o yuan e moedas digitais.
Mas ele mesmo alerta: essa mudança será lenta,
turbulenta e arriscada.
A confiança internacional não se desloca com discursos
—ela se constrói com décadas de estabilidade institucional e financeira.
Para
o Brasil, o desafio é reduzir a dependência estratégica do dólar, fortalecendo
o real —não como moeda global, mas como instrumento de autonomia. Isso exige
mais do que acumular reservas.
Exige previsibilidade fiscal, ambiente
regulatório confiável, mercado de capitais profundo e uma política monetária
crível. O real digital, a modernização financeira e a disciplina fiscal
caminham nesse sentido.
Até
que o sistema mude —se é que vai mudar— o dólar continuará sendo o centro. Mas
com certeza podemos ser satélites mais protegidos, com fundamentos arrumados.
Política
econômica firme, instituições sólidas e transparência são o caminho para que o
Brasil flutue com o dólar, sem jamais naufragar por causa dele.
ANA PAULA
VESCOVI - economista-chefe do Santander Brasil