Graças
à tal rede padrão do cérebro, podemos refletir sobre nosso passado e fazer
planos para o futuro
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Os
livros escolares ainda apresentam o cérebro como uma estrutura que detecta
estímulos e produz respostas a eles. Se fosse só isso, não passaríamos de uma
versão vitaminada de bactérias –que, mesmo sem um sistema nervoso, ou sequer
neurônios, já que são seres unicelulares, são perfeitamente capazes de detectar
e responder a estímulos. Bactérias também têm comportamento. O cérebro, quem
diria, é dispensável neste sentido.
Isso
não quer dizer que o cérebro é inútil –muito pelo contrário. Enquanto bactérias
e outros seres, até mesmo os dotados de um sistema nervoso simples, são fadados
a viver no presente, seguindo rumos ditados pelo ambiente e seus
acontecimentos, nós que temos um cérebro desfrutamos de uma propriedade
libertadora: formamos nossos próprios pensamentos, capazes de guiar nossas
ações e torná-las independentes do que se passa ao nosso redor.
É claro
que pensar sobre a realidade ofertada pelos sentidos, e ajustar nossas ações a
ela, é importante. Mas ao menos igualmente importante é poder divagar, passear
por pensamentos desconexos, puramente internos. Tais ações puramente mentais
são, como as ações musculares, também produto do funcionamento do cérebro. Elas
têm origem, contudo, em partes do cérebro que não respondem a estímulos
externos – na verdade, são partes do cérebro que se tornam menos ativas quando
voltamos nossos pensamentos para o mundo exterior. Por isso, essas regiões do
cérebro levaram mais tempo a ser descobertas, mas hoje têm nome: elas formam,
em conjunto, a rede de "funcionamento
padrão" do cérebro – default
functions, no original.
O nome
foi dado por seu descobridor, o neurocientista Marcus Raichle, da Universidade
Washington em Saint Louis, EUA. Felizmente, o que no começo foi controverso –
afinal, media-se até então o aumento da atividade de partes do cérebro durante
tarefas, e não se esperava que nada diminuísse – logo se tornou um campo de
pesquisa intensa.
Hoje se sabe que a atividade das partes do córtex cerebral que
compõem a tal rede padrão, um circuito altamente interconectado entre seus
próprios membros e outras partes do córtex, envolvidas com representações do
estado e posição do corpo bem como nossas memórias, confere integridade e
continuidade à atividade do cérebro, e portanto à mente. Graças a essa rede,
sempre ativa enquanto estamos acordados, podemos nos retirar mentalmente do
mundo e pensar em nós mesmos: refletir sobre nosso passado e fazer planos para
o futuro, não importa o que esteja acontecendo ao nosso redor.
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista,
professora da UFRJ, autora do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida
Melhor" (ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com