Eis que a língua dá nos dentes
Finalmente esse
músculo ganha atenção de neurocientistas
A língua é subestimada. Esse músculo, longo, forte
e com uma extremidade livre, ao contrário de todos os demais do corpo, se move
o tempo todo sem que a gente perceba —e com grande precisão.
Falar só é
possível porque a língua levanta, abaixa, rola e vibra o tanto certo e na hora
certa.
Todo dia, viver mais um depende de a língua sempre fazer a coisa certa:
um errinho e a gente engasga, se a comida, a água ou mesmo a saliva dentro da
boca for encaminhada para a garganta na hora errada.
Tanto controle, e sem que a gente se dê conta ou
precise pensar no assunto, acontece sem que seja preciso o córtex cerebral se
incomodar.
O colículo superior dá conta do recado de mexer a língua sozinho,
segundo um estudo feito na Universidade
Cornell, nos EUA, e recém-publicado na revista Nature.
A estrutura, cujo nome bonitinho indica a aparência
de morrote na parte de cima da superfície do tronco cerebral, foi por algum
tempo queridinha dos neurocientistas por sua facilidade de acesso e função.
Muito antes de o córtex cerebral receber notícias dos sentidos e comandar
alguma ação, o colículo superior intercepta cópias das mensagens e já toma
medidas.
Todo tipo de movimento que reposiciona a cabeça, os
olhos ou as orelhas —para aquelas espécies que podem movê-las— em resposta a
algum evento no mundo é organizado pelo colículo superior de maneira direta e
imediata.
Se algum som súbito vem dali, é para ali que os olhos, a cabeça e as
orelhas rapidamente se voltam, o que rende ao cérebro informação rica e
detalhada sobre tudo o que acontecer a seguir.
O colículo superior, com seus
mapas do corpo e controle dos músculos que o movem, age primeiro, e o córtex é
informado depois.
A língua, como eu disse e a gente esquece, é um desses
músculos, e também ela se move rapidamente em direção de novos acontecimentos.
Quem tem cachorro ou bebê em casa sabe: tudo quanto é novidade é imediatamente
lambida. Faz sentido, porque afinal a língua não só é um músculo como ainda é
coberta de sensores.
Gente grande faz a mesma coisa, apenas mais discretamente,
cutucando com a língua aquele restinho grudado nos dentes —isso quando não está
explorando a língua ou pele alheia.
Mover
a língua diretamente de encontro ao que ela explora é fundamental para tudo o
que ela faz, assim como mover os olhos ou a cabeça toda.
O
novo estudo, feito com camundongos, mostra que o colículo superior dos
bichinhos é necessário e suficiente para que a língua seja reposicionada quando
o canudo do bebedor que eles lambem se move inesperadamente para um lado.
Enquanto é o centro da língua que toca o canudo, as lambidas seguintes ocorrem
exatamente no mesmo lugar, à impressionante taxa de oito por segundo; mas se o
canudo "escapa" (por safadeza dos cientistas) e toca a lateral da
língua, o colículo superior recalibra a próxima lambida naquela direção em
menos de um décimo de segundo.
E pronto: o comportamento volta a acontecer no
centro da língua e no centro do corpo.
Ao
longo dos anos, o córtex cerebral, necessário à percepção consciente, roubou a
atenção que o colículo cerebral recebia dos neurocientistas.
Mas é graças ao
colículo que a gente faz muita coisa sem precisar ter ciência do que está
fazendo —mesmo que ele acabe dando com a língua nos dentes, de um jeito ou de
outro.
SUZANA
HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da
Universidade Vanderbilt (EUA)