Venha comigo em um buraco de coelho
Como você mantém
seu sangue quente, e que diferença isso faz?
A Alice de Lewis Carroll caiu no buraco de um coelho
e descobriu o País das Maravilhas.
A expressão não existe em português, mas
deveria: em inglês, entrar num buraco de coelho significa deixar de lado o que
você estava fazendo para ir atrás do coelho de uma ideia que captura sua
atenção e persegui-lo por um buraco onde não cabem muitas outras possibilidades
ou assuntos além do coelho e você.
No processo, você descobre e aprende um
mundo de coisas novas que você nem suspeitava que existiam.
E com sorte, você
sai do outro lado do buraco do coelho não apenas com um mundo de novas
informações desconexas e inúteis, como a Alice, mas com uma nova visão do
mundo.
Vive acontecendo comigo. Ainda bem, porque faz
parte do ofício de cientista: quando há boas condições de trabalho, o
conhecimento avança porque cientistas têm os meios, a segurança da estabilidade
profissional, e o tempo para notar coelhos que aparecem no caminho e deixar
tudo de lado para persegui-los.
Coelhos são perguntas sem respostas, ou fatos sem
explicação ou razão de ser.
Cair num buraco de coelho em tempos de internet é
maravilhoso não por causa do Google (que, para ser justa, ajuda um
bocado, sim) ou dos malditos algoritmos generativos que só inventam besteira,
mas por causa das bases de dados enormes e facilmente acessíveis.
O Brasil,
aliás, foi um dos pioneiros em dar aos seus pesquisadores acesso a publicações
científicas do mundo todo, através da Plataforma Capes.
Às vezes o coelho exige ação imediata. Foi o caso
do buraco em que me meti três anos atrás, cujo coelho era quantos neurônios os dinossauros tinham no cérebro.
Dinossauros levavam fama de burros por causa do tamanho diminuto do seu cérebro
comparado ao corpo —mas, se já tivessem cérebro de ave, talvez tivessem uma
quantidade de neurônios muito mais digna de respeito.
Celeridade era de ordem, porque um ex-colaborador
babaca havia acabado de publicar (sem mim, efetivamente enterrando nossa
colaboração) a base de dados que incluía números de neurônios em mais de cem
répteis e algumas dúzias de aves.
O panaca, contudo, não sabia muito o que
fazer com os dados, então publicou umas figuras chiques, repetindo o que todo
mundo já dizia, e não notou o ouro que ele tinha em mãos de poder deduzir de
que eram feitos os cérebros das espécies de nem-répteis-nem-aves que ficaram no
passado.
É, ser cientista não é garantia de ser gente bacana.
Me
joguei de cabeça no buraco daquele coelho, peguei os dados agora em domínio
público, e pelos três meses seguintes eu bebi, comi e respirei dinossauros —e
então eu tive o prazer de apresentar meus resultados na cara do bocó do
ex-colaborador, em um congresso aliás organizado pelo próprio.
No ano seguinte
saiu o artigo com minhas estimativas: Tyrannosaurus rex tinha tantos neurônios quanto um
babuíno, o que muda de vez nossa
imagem mental daquele tempo. Rá!
Outras vezes é importante saber deixar o coelho
para depois: a gente documenta o coelho, tira foto dele, faz umas anotações, e
volta ao assunto depois, quando o tempo permitir cair no buraco.
Agora, por exemplo, finalmente chegou a hora de
mergulhar em um desses buracos guardados.
Seguinte: a grande parte dos animais
funciona na temperatura do seu ambiente, não gasta energia mudando isso, e vive
perfeitamente bem.
Nós mamíferos e as aves, não. Como, e que diferença isso
faz? Você está convidado a entrar comigo do buraco do coelho chamado endotermia.
SUZANO HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade
Vanderbilt (EUA)