O peso das heranças
- O controle racial nunca foi abolido; foi modernizado
- A violência deixou de ser espetáculo explícito para virar
procedimento administrativo
Não
dá para falar de consciência sem falar de consciência do peso.
O peso de carregar na pele a suspeita permanente, a culpa presumida,
o alvo invisível.
As algemas mudaram de metal
para invisibilidade social, para bairro sem
saneamento, para escola sem estrutura, para currículo que não passa do RH, para bala
"perdida" que sempre encontra o mesmo alvo.
O controle racial nunca
foi abolido; foi modernizado, tornado mais palatável, diluído em discursos de
mérito e oportunidade que esquecem, convenientemente, que a largada nunca foi
igual.
Há
quem diga que o passado passou. Que o engenho ficou nos livros, que a senzala é
museu. Mas o controle apenas trocou de roupa.
Onde antes havia feitor e
chicote, hoje há abordagem seletiva e flagrante fabricado. A violência deixou
de ser espetáculo explícito para virar procedimento administrativo, burocracia
da exclusão.
O Atlas da Violência 2025 chegou com seus números
frios que queimam: 28,9 homicídios para cada 100 mil pessoas negras em 2023.
Entre não negros, 10,6.
Uma pessoa negra tem 2,7 vezes mais chances de ser
assassinada. Não é estatística, é biografia coletiva, é mapa do medo, é
geografia da morte que reconhece rostos antes de disparar. Foram 35.213 vidas
negras interrompidas naquele ano. Trinta e cinco mil duzentas e treze histórias
que não chegarão ao final.
No Nordeste, a desproporção grita ainda mais alto:
41,7 homicídios de negros contra 11,6 de não-negros a cada 100 mil habitantes.
Quase quatro vezes. Em alguns estados, cinco vezes. São números que não cabem
em gráficos, transbordam para ruas, vielas, manchetes que já não chocam mais de
tão repetidas.
Zumbi não foi apenas morto em 1695. Foi
esquartejado, exposto, mas suas perguntas continuam vivas: quem decide quem
vive? Quem decide quem morre? Quem decide quem merece segunda chance e quem
merece algema perpétua?
As respostas estão nos dados, estão nas filas de
revista aos sábados nos presídios, estão nas mães que aprenderam a ter medo do
telefone à noite.
A consciência negra que se celebra, ou se deveria
celebrar, não é vitimização.
É lucidez. É recusar a anestesia conveniente que
transforma estrutura em coincidência, que chama de "complexo"; o que
é, na verdade, bastante simples: um país que nunca fez as pazes com sua própria
composição racial.
Preferiu esquecer, apagar, e seguir adiante carregando nas
costas uma violência que não se nomeia, mas se repete.
Consciência é o primeiro tijolo que se remove.
Depois dele, vêm todos os outros, e serão muitos. É preciso desmontar, pedra
por pedra, esse edifício de exclusões que insiste em se camuflar de ordem
natural das coisas.
RAIMUNDO
FABRÍCIO ALBUQUERQUE - advogado,
filósofo, mestre em Sociedade e Cultura pela UFAM, professor de direito na
WYDEN