Dopamina não basta
Além de antecipar
prazer é preciso passar à ação.
Eu sei que todo mundo quer instruções fáceis a
seguir sem ter que pensar sozinho se comer ovo ou chocolate faz bem ou mal,
quantos minutos de exercício são necessários por dia ou semana, se pode ou não
pode beber um pouquinho de álcool.
Os influenciadores aproveitam a onda e
vendem a ideia de que toda motivação se resume a liberar dopamina no cérebro.
"Exercício é bom porque libera dopamina", dizem uns.
Se liberar mais dopamina é bom, expliquem-me então,
influenciadores, por que consumir regularmente uma cocainazinha, que aumenta em
dez vezes ou mais a quantidade de dopamina ao redor dos neurônios, não é uma
boa ideia. Hmmm?
A
resposta simples é que dopamina demais dessensibiliza os neurônios que
importam, assim como música alta demais deixa a gente surdo.
Aliás, ovo,
chocolate, exercício e álcool tanto podem fazer bem quanto mal; é tudo uma
questão de saber dosar a quantidade.
Mas
não é só a quantidade de dopamina que importa. Como eu vivo insistindo, não é a
dopamina que dá prazer ou faz a gente se mexer em antecipação de prazeres
futuros, o que a gente chama de motivação.
A dopamina é o mero agente que, pelo
lado do hipotálamo, ativa ações viscerais que o cérebro lê de volta como
prazer, e, pelo lado do córtex cerebral, facilita o recrutamento de ações
motoras –aquelas que a gente chama de comportamento.
Essa
dissociação entre sentir ou antecipar prazer de um lado e passar à ação de
outro acaba de ser demonstrada por um estudo de pesquisadores da Universidade
de Cambridge usando um animal brasileiro que vem se tornando um queridinho da
neurociência: o mico.
O córtex cerebral do mico é uma versão miniatura de um
cérebro de primatas, inclusive humanos, mas cheio de neurônios comparado com o
de um rato.
Mais importante ainda: micos, como outros primatas, são facilmente
treinados em comportamentos que põem à prova sua motivação para agir em troca
de recompensas –enquanto pesquisadores devidamente financiados por seus
governos usam ferramentas tecnológicas para manipular a atividade de partes
diferentes do cérebro.
Baixa dopamina é uma característica da depressão, mas baixa atividade do córtex
pré-frontal dorsolateral (dlPFC), tradicionalmente considerado
"racional", também é. Que sentido isso faz?
Sabendo que o dlPFC
"fala" com o córtex cingulado, que controla as ações motoras dos
comportamentos movidos a antecipação de prazer ou punição, o laboratório de
Angela Roberts injetou um adenovírus modificado nessas duas regiões do córtex
para impedir especificamente sua ação, enquanto a dopamina supostamente fluía
normalmente.
Resultado: inibir tanto o dlPFC quanto o córtex
cingulado conectado a ele diminuem em enormes 70% o comportamento recompensado
dos micos.
Não é uma questão de falta de prazer, pois, tarefa à parte, os
animais continuavam consumindo água doce como qualquer outro primata.
O que a
inibição do córtex atrapalha, pelo jeito, é a parte de passar do entendimento à
ação: é topar o esforço de literalmente se mexer –o que também falta na
depressão, além da falta de prazer.
Influenciadores, tomem nota. Não basta ter dopamina
e antecipar prazer; é preciso passar à ação.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e
neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA)