As pessoas querem leitos de
hospital, e não manipulação nas redes sociais
O
governo federal tem adotado como prática de comunicação social no Brasil o
ilusionismo. Em vez de lidar com fatos e dados, tornou-se comum no país
promover uma irrealidade informacional.
Só que, diferentemente do papel que o ilusionismo tem no entretenimento (quem
não gosta de um bom show de mágica?), quando aplicado como estratégia de
comunicação pública e de fazer política as consequências são desastrosas.
A Covid-19 é o exemplo mais recente e trágico disso.
Live do presidente Jair Bolsonaro na semana passada, em
que ele usou máscara
Converse com qualquer mágico profissional e ele pode falar das suas
estratégias. A primeira e mais importante é dominar a arte da atenção. Ao
contrário do que se pode pensar, a chave não é distrair as pessoas. É, ao
contrário, capturar a atenção delas para o lugar errado.
Se você está concentrado olhando para o lugar errado, eu posso fazer o que
quiser aqui no lugar certo. Esse é o princípio que o ilusionista usa para fazer
mágica. E é o princípio que vem sendo usado por governos populistas para
avançar agendas improváveis ou para disfarçar a sua incompetência.
Há outras estratégias derivadas do ilusionismo que vão soar familiares para
todos nós. Por exemplo, fazer um evento parecer mais importante do que
realmente é. Ou o contrário: dar a impressão de que um evento relevante não tem
importância nenhuma.
Essas estratégias se valem do princípio de que é da natureza humana não
conseguir prestar atenção em mais de um grande estímulo ao mesmo tempo. Com
isso, é muito fácil fazer as pessoas trocarem de preocupação ou de indignação.
Se as pessoas estão indignadas com algo realmente sério, ofereça a elas algo
novo e muito menos importante para se indignarem. Essa estratégia tem sido
aplicada à exaustão.
No início da semana passada, por exemplo, a Covid-19 foi chamada de “fantasia” (tratando algo sério
como se não tivesse importância). Ao final, a semana foi coroada com a
distração a respeito de quem teria falado o que para a Fox News com relação ao
resultado dos exames do presidente.
De novo, essa polêmica de menor importância permitiu desviar a atenção para o
que realmente deveria ter sido feito: todos os integrantes da comitiva
presidencial que viajaram no mesmo avião com uma pessoa infectada devem ser
colocados em quarentena por no mínimo 14 dias —o que não aconteceu.
A polêmica da Fox News habilmente tirou a atenção do que o presidente e sua comitiva deveriam ter feito após circularem e viajarem
com pelo menos três pessoas infectadas.
Nesse contexto, vale sempre lembrar da seguinte regra: sempre que as mídias
sociais estiverem tomadas por um assunto que surge de repente e que “todo o
mundo” está falando a respeito, desconfie.
Esse
pode ser o sintoma de que tem alguém querendo mudar o foco da atenção das
pessoas de um lugar para outro.
Nesse
contexto, a Covid-19 pode marcar no Brasil o início do esgotamento da prática
do ilusionismo governamental, que até agora vinha sendo bem-sucedida. Em face
da realidade do novo coronavírus as pessoas querem leitos de hospital, e não
manipulação nas redes sociais.
Ronaldo Lemos -advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte: coluna jornal FSP