E o lobo virou bolo


E o lobo virou bolo

  • O cérebro fica tão bom no que faz que não notamos que a fala não tem pausas
  • O córtex auditivo é quem cria as pausas percebidas entre palavras

Clara, minha afilhada, tinha medo do lobo da estória "Chapeuzinho Amarelo", do Chico Buarque, com seus dentões enormes e olhos arregalados. 

Mas só até eu conseguir trazê-la de volta ao sofá para ouvir a parte mais importante da estória, quando a menina começa a repetir lobo-lobo-lobo e o transforma num inofensivo... bolo. 

Pronto: ressignificado o som, o medo vai-se embora.

A brincadeira infantil de transformar lobo em bolo ilustra uma característica fundamental de como o cérebro processa os sons da fala, que é a criação de pausas ou barreiras onde não há barreira alguma. 

A fala humana é quase sempre um fluxo ininterrupto de sons, que apenas variam ao longo do tempo, e rapidamente, como a superfície da água de um rio. 

O que ouvimos como sequências de palavras faladas bem delimitadas, com separação entre os sons de palavras sucessivas, é uma criação do cérebro, baseada em nossa experiência com a língua (quer dizer, o código de correspondências) usada para nos referirmos ao mundo. 

Mas qual parte do cérebro cria a separação entre palavras: já o córtex auditivo, que é a primeira região do córtex a processar sons, ou alguma outra região mais associativa e implicada em feitos racionais, como o córtex pré-frontal que teimam em dizer que é especialmente expandido em humanos?

A única maneira de responder à pergunta é investigando diretamente a atividade do cérebro humano, o que tem que ser feito com eletrodos pousados diretamente no cérebro: as máquinas de ressonância magnética, hoje populares e possantes, continuam não tendo resolução espacial ou temporal suficiente para acompanhar os sons da fala. 

O neurocirurgião Edward Chang, da Universidade da Califórnia em San Francisco, pôde fazer isso, registrando a atividade de neurônios na região auditiva do córtex cerebral de pacientes humanos passando por cirurgia do cérebro acordados, como é de praxe.

Em dois artigos publicados neste ano, Chang e sua equipe descobriram que a atividade neuronal no córtex auditivo de fato já mostra pausas entre palavras que não existem na sequência de sons da fala natural ouvidos. 

Lá pelo meio de cada som entendido como uma palavra separada, a atividade no córtex diminui, exatamente como se os neurônios reconhecessem a metade que já ouviram e entendessem que é para concluir o processo e se preparar para a palavra seguinte. 

O resultado é que o córtex auditivo introduz uma pausa de um décimo de segundo entre os sons da fala, efetivamente separando as palavras que o resto do cérebro então ouve.

O processo é informado pela experiência de cada um com a língua. É preciso ouvir uma língua estrangeira, que não conseguimos separar em palavras, para ser lembrado de que a fala é apenas aquele rio de sons ininterruptos. 

Mas quanto maior nossa experiência decodificando uma nova língua, mais o córtex auditivo aprende a introduzir pausas, separando os sons em palavras.

Chang fez com seus pacientes a experiência da transmutação do lobo em bolo, pedindo que apertassem um botão com a mão esquerda enquanto ouvissem um, e com a mão direita enquanto ouvissem o outro. 

E lá estava: o córtex auditivo ora separava lobolobolobolobo em lobos, com interrupção de atividade depois do bo, ora em bolos, com a pausa depois do lo. 

A linguagem, tal como a música, é criada não só pelas notas mas também pelas suas pausas.

SUZANA HECULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA)

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