Oscar para 'Tudo em todo
lugar...' fez com que me sentisse descolado do meu tempo
Se podemos ter tudo, que valor têm as coisas? Se podemos estar com
todos, que valor têm as pessoas?
Uma crônica de Rubem Braga que
muitos da minha geração leram na escola conta como um padeiro aprendeu que não
era ninguém: "Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e
ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha
lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para
dentro: ‘não é ninguém, não senhora, é o padeiro’".
A vida muitas vezes tem esse
jeito sem cerimônia de nos dar notícias duras. A mais recente que recebi veio
nas manchetes dos jornais informando que "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo" havia
sido o grande vencedor do Oscar.
Foi como se me dissessem que eu estava me
tornando um "ninguém", alguém incapaz de compreender o seu tempo.
Explico. Alguns meses antes,
logo que o filme ficou disponível no "streaming" internacional,
recebi uma mensagem entusiasmada de meu filho de 34 anos, dizendo que havia
assistido na noite anterior àquele que seria sem dúvida o melhor filme do ano.
À noite, minha mulher e eu nos
sentamos diante da televisão já antecipando o prazer de assistir a um grande
filme. Poucos momentos depois, estávamos nos perguntando se nosso filho não
estaria gozando dos seus pais.
Como seria possível que ele acreditasse que
gostaríamos daquilo? Um caos visual, onde cenas repletas de
elementos que parecem saídos de um bazar barato se alternam em grande
velocidade, acompanhados por diálogos estridentes e muitas vezes
incompreensíveis e um nexo que —mesmo prestando muita atenção— insiste em
tentar escapar, obrigando a uma perseguição exaustiva.
Depois de cerca de uma hora
entregamos os pontos e desligamos a televisão.
Resolvi atribuir a recomendação
de meu filho a uma abordagem muito intelectualizada reforçada pela faculdade de
cinema, ao seu fascínio pela moderna cultura oriental e pelos videogames e a um
certo exotismo que a juventude costuma cultivar.
Fiquei pacificado com essa
racionalização e esqueci-me do assunto.
Essa paz durou até o anúncio
do Oscar.
Não que eu atribua à Academia o condão
de efetivamente apontar o que de melhor o cinema produziu em um determinado
ano; muitos filmes ruins já foram os vencedores da premiação e alguns
excelentes ficaram de fora.
Ainda assim, não se pode ignorar que o
reconhecimento traduz pelo menos a simpatia da maior parte das pessoas.
Perguntei-me como é possível se
estar em tamanha dissintonia com o mundo de hoje?
Ainda me senti tentado a
buscar consolo em uma matéria de O Globo, onde o título da jornalista Ruth de
Aquino dizia que esse era o pior filme que já tinha visto até o fim.
Mas, ao
ler a matéria, percebi que os seus motivos eram muito mais elaborados do que
aqueles que eu seria capaz de formular, com a parca compreensão que havia tido
do filme.
Além do mais, sempre que penso em me confortar por encontrar colegas
de infortúnio, lembro-me da frase que um companheiro de trabalho costumava
citar: "Mal de muchos, consuelo de tontos".
Parafraseando o grande
Vanzolini, "assim como Churchill, tentei outra vez". Convidei meus
filhos e um afilhado para um sushi diante da televisão e uma conversa após o
filme.
Procurei manter atenção concentrada, resistindo ao hábito que desenvolvi
recentemente de olhar o celular de vez em quando.
Ocorreu-me que o hábito corresponde
justamente ao impulso de fazer tudo ao mesmo tempo, contido na mensagem do
filme.
Na primeira tentativa de
assistir ao filme, uma das poucas coisas que havia apreendido era a coexistência de universos paralelos, cada um
deles correspondendo ao caminho que a vida teria seguido conforme a decisão que
houvesse sido tomada em cada uma de suas muitas instâncias críticas.
Não apenas
esses universos seguem sua rota independentemente, como alguns personagens são
capazes de migrar entre eles conforme desejem.
Ao pensar nessa ideia, é impossível deixar de sentir o seu poder
de sedução. Já imaginaram como seriam menos difíceis as opções na vida, se não
precisássemos renunciar a nada?
Se a alternativa preterida em determinada
ocasião pudesse ser retomada mais à frente, caso a escolha original não nos
tenha satisfeito? Irresistível, não?
Se a hipótese é tentadora para quem já fez boa parte das
escolhas difíceis na vida e que, com maior ou menor dor, conciliou-se com as
renúncias nelas implícitas, imagine-se para os jovens que ainda têm tantas
encruzilhadas críticas à sua frente.
É aqui que o filme surpreende.
É como se nos dissesse: "Be
careful what you wish for" (tenha cuidado com o que deseja). Através de
uma linguagem visual hiperbólica, cenas de mau gosto explícito e combinação do
brega com inteligência e humor, o filme nos leva a formular a pergunta: se
podemos simplesmente mudar de universo, que valor tem a vida?
Ficamos com a mensagem de que esse valor reside nos compromissos
que fazemos, nos afetos que elegemos e na busca persistente da compreensão do
outro através da empatia.
E assim evitamos o vazio infinito das relações
insignificantes, do tudo que vira nada, representado no filme por uma enorme
rosquinha negra (associada ao buraco negro de Schwarzschild, em uma crítica que
li).
Ao terminar o filme, não posso negar que assisti-lo me tenha
sido penoso em diversos momentos, que me tenha parecido muitas vezes confuso,
exagerado e mais longo do que o necessário.
Senti que foi como ouvir uma bela
história em uma língua áspera aos meus ouvidos, que não compreendo bem.
Mas as
línguas estão aí para as aprendermos e, enquanto tivermos vontade, sempre
podemos contar com os filmes e os filhos para nos ajudarem.
CANDIDO BRACHER - administrador de Empresas formado pela FGV. Foi
executivo do setor financeiro por 40 anos.