A
sociedade brasileira projetou a realização social no conforto, no luxo, em bens
de consumo prestigiosos. Há melhor símbolo disso do que a profusão de iPhones?
Eles não se limitam a dar prazer. Eles nos realizam. Melhor dizendo: é o prazer
que nos realiza. Mas esta visão do mundo, tão frequente no Brasil, não é nada
óbvia. Um francês imbuído do valor da educação, um alemão formado na convicção
do dever, um inglês convencido do valor ético do trabalho dificilmente
enxergariam as coisas assim. Mas, aqui, é muito forte a ideia de que pelo
prazer se vence. Basta ligar a rede Globo, qualquer dia deste mês, em torno das
23 horas, para ver isso, parte ao vivo, tudo em cores.
Volto
a comentar os rolezinhos. Eles foram uma surpresa pelo timing e pela
dimensão, mas prolongam algumas tendências de nossa sociedade que não deveriam
nos surpreender. As manifestações de 2013 foram uma exceção, como as Diretas-Já
em 1984 e o impeachment de Collor, em 1992, espaçados momentos em que a
cidadania toma o espaço público para defender a coisa pública. O rolezinho é
político, mas porque tem um significado político, não porque se expresse em
termos políticos. Ele responde a uma nossa tendência, para o mal – e para o bem
–, que é carnavalizar.
Na
sua melhor versão, é Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago, de
1929: “A alegria é a prova dos nove”. Naquela época, dizia-se que o Brasil era
fruto de “três raças tristes”, o português, o negro e o indígena. Oswald rompia
com esse mito de uma tristeza originária. Contestava a herança jesuítica e
religiosa da colônia. Abria lugar para o carnaval, a festa, as paixões alegres.
Rolês
mostram que a ideologia do shopping venceu
Mas o
fato é que carnavalizamos. Não é só o Big Brother que propõe o sucesso
pela exibição do corpo. É quase toda a mídia popular que, sempre que vai
contrastar esforço e lazer, estudo e diversão, mente e corpo, opta
decididamente pelo segundo termo. Nossa cultura é sobrecarregada de hedonismo.
Já
observei aqui que prazer não é felicidade, ao contrário do que se ouve todos os
dias. O prazer é breve, instantâneo, intenso; a felicidade é um estado simples
e permanente, modesto. Só é feliz quem reduz sua demanda de prazeres. Mas nossa
sociedade construiu um sistema em que o prazer é requerido o tempo todo, com
sua consequência, apontada pelos filósofos desde a Antiguidade: os prazeres não
levam à satisfação. Eles formam uma adição. Uma sociedade que valoriza a este
ponto o consumo, seja na Miami de classe média, seja no rolezinho de periferia,
tem dificuldades de ir além do prazer. Porque ser feliz é viver ao máximo o que
se tem, não é buscar o máximo fora de si. Ser feliz não é depender do consumo.
Mais que isso: ser feliz é não depender do consumo.
Mas é
o consumo que tem marcado a inclusão social, no Brasil. A inclusão dos últimos
anos foi em boa medida um aumento do poder de compra a crédito. Os pobres
compram mais – o que é ótimo, porque eles tinham e ainda têm acesso limitado a
vários dentre os bens que asseguram o conforto. Mas esse foi o eixo mais
marcante da inclusão. Embora a educação esteja melhorando, a dupla do bem – que
seriam o mix de educação e cultura, e o de saúde e atividade física – não
desperta igual atenção nem gera resultados rápidos. Aliás, se fosse outra a
prioridade dos governos petistas, eles se teriam defrontado com uma oposição
ainda maior. Aumentar o poder aquisitivo injeta dinheiro na veia da economia.
Já melhorar o que chamei dupla do bem exigiria mais investimentos públicos,
isto é, mais impostos. Não seria fácil nem, talvez, politicamente possível.
Estamos
no limite do que pode ser a inclusão social pelo consumo. Beira o ridículo
negar a inclusão social promovida pelo PT. Foi substancial. Mas se deu pelo que
nossa sociedade consumista mais valoriza. Melhorar radicalmente as escolas
teria exigido mais verbas e protagonismo do poder público. O mesmo vale para a
saúde, o transporte e a segurança públicos. O choque com as classes mais ricas
teria sido forte, porque a exigência tributária teria aumentado. Basta ver como
é difícil a Prefeitura de São Paulo arrecadar o necessário a fim de melhorar um
pouco os ônibus, para se ter o tamanho do problema.
Com o
consumo, o PT escolheu a via do possível. Dificilmente seus adversários teriam
feito melhor. Mas a trilha do consumo significa: a ideologia que ganhou foi a
do shopping center. Dizia-se há alguns anos que a ideologia dominante numa
sociedade é a ideologia de sua classe dominante. Se for verdade, os rolês
mostram que a ideologia da classe média, seu “way of life”, seduziram os mais
pobres. O que muitos deles querem é estar no mundo da classe média. Não querem
romper com ela nem eliminá-la. Querem fazer parte dela, claro que com os
ajustes necessários.
Se a
classe média não gosta disso, é outra coisa (essa batalha, a “velha classe
média” vai perder, e as chances do PSDB estão – como bem entendeu Aécio, mas
não os jornalistas favoráveis ao partido – em conseguir ser o partido de todas
as classes médias, não só da antiga). Mas a classe média, ou sua maioria
consumista, poderia ficar contente. Porque isso significa que os movimentos dos
jovens chamados rolezinhos não acreditam que um outro mundo seja possível. O
problema é que a inclusão pelo consumo tem um alcance limitado, chega uma hora
em que você tem de produzir e não só consumir, e a produção requer hoje
competências cada vez maiores, que se chamam educação, cultura, ciência. O
engraçado é que também elas podem dar (algum) prazer, mas nossa sociedade,
independentemente da classe social, não sabe disso. Prefere o shopping.
Renato Janine Ribeiro - professor titular de ética
e filosofia política na Universidade de São Paulo
Fonte: Valor Econômico