Talvez
seja preciso ser um bilionário para se dar ao luxo de não ter um smartphone
Esteve no Brasil na semana passada o escritor Yuval Noah Harari, conhecido mundialmente por seus livros
“Sapiens” e “Homo Deus”. Tive a oportunidade de conversar
com ele em três eventos distintos, incluindo um realizado no Congresso
Nacional, com presença massiva de parlamentares. Em uma das conversas, ele
confessou que “não tem smartphone”.
Essa revelação leva a pensar o que significa no mundo de
hoje —para quem tem condições de pagar por conexão— não ter um
smartphone.
O historiador Yuval Noah Harari durante palestra no
Fórum Econômico Mundial, em Davos, em 2018
Uma resposta a essa indagação pode ser encontrada
involuntariamente no documentário sobre a vida de Bill Gates, recentemente lançado na Netflix (“O Código Bill Gates”).
O documentário é interessante. No entanto, o que mais me chamou a atenção é o
fato de que Gates vive praticamente desconectado. Ele lê livros em papel
(muitos!) e dá a impressão de que raramente chega perto de um computador ou de
um smartphone.
Isso ilustra o fato de que no mundo de hoje talvez seja
preciso ser um bilionário do nível de Bill Gates para se dar ao luxo de não ter
um smartphone.
Como disse Harari quando perguntei sobre isso: “O maior
símbolo de status no mundo de hoje é a desconexão. Se você tem um smartphone,
significa que você tem um chefe. Pode ser seu marido, seus filhos ou colegas de
trabalho. Podem ser também os próprios aplicativos. Por meio do aparelho você
está condicionado a ser acionado por alguém a qualquer momento”.
Harari diz que, apesar de não ter smartphone, seu marido
tem. E isso o protege das infinitas demandas que vêm através do aparelho,
segundo ele “abrindo tempo para que ele possa pensar e escrever”.
Perguntei também o que ele recomendaria nesse contexto
de overdose de informação. Sua resposta foi justamente a importância de buscar
proteger espaços de desconexão. Criar “santuários” mentais. Momentos em que
temos autonomia e tranquilidade para deixar a mente livre.
Esse é, aliás, um dos principais pontos enfatizados por
Harari. A humanidade nos últimos séculos teve um progresso imenso na área de
saúde, com a invenção das vacinas e dos antibióticos e avanços em medicina e
prevenção. Não por acaso a expectativa de vida era de 49 anos nos Estados
Unidos no início do século 20 e hoje é de 78 anos.
O problema é que, se avançamos em saúde física, em saúde
mental não se pode dizer o mesmo. Especialmente por causa da velocidade da
mudança atual, casos de ansiedade ou depressão estão se tornando cada vez mais
visíveis.
Harari lida com isso meditando duas horas por dia, além
de partir uma vez por ano para um retiro isolado de ao menos um mês. Soluções
que usualmente não são acessíveis à maioria das pessoas.
No mundo em desenvolvimento, a situação é ainda mais
paradoxal. Há ao mesmo tempo o desafio de conectar os desconectados e de
reparar os excessos da ultraconexão. Tarefa cada vez mais difícil em um mundo
em que a sobrevivência depende cada vez mais de estar conectado o tempo
todo.
Ronaldo
Lemos - advogado, diretor do Instituto
de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte:
coluna jornal FSP