Pais siderados ou inibidos diante
da tarefa de educar são um perigo
Um
ginecologista conversa com sua paciente enquanto a examina. Seria uma cena
corriqueira, se não víssemos seu rosto emergir dentre as pernas da mulher com
um cigarro na boca.
São
os anos 1960 e a cena da série “Mad Men” (2007-2015, disponível na Netflix)
ilustra a onipresença do cigarro no mundo àquela época.
Enquanto
a propaganda do Marlboro associava cigarro à masculinidade, saúde e natureza,
as pesquisas médicas denunciavam que a terra “onde os homens se encontram”
estava mais para “fazenda branca” do que para paraíso dos machões.
Pesquisar
os efeitos, admiti-los publicamente, lutar contra os interesses financeiros dos
gigantes do tabaco —indústria e propaganda—, implementar medidas de saúde
pública para mudança de hábito e diminuição de danos, lutar contra o próprio
vício, enfim, tratou-se e trata-se de um longo e interminável processo.
Será
que esse exemplo pode nos ajudar a pensar sobre o atual vício nas redes
virtuais? Pesquisas e experiências clínicas se acumulam mostrando os efeitos
alarmantes do mergulho no mundo virtual sem mediação e sem restrições:
depressão, dificuldades nas relações sociais, sexuais, escolares, distúrbios
psíquicos, somáticos, adição, empobrecimento simbólico, violência.
As crianças e o vício na internet –
A
pesquisa internacional TIC Kids On-line estuda, desde 2012, riscos e
oportunidades que o uso da internet oferece a crianças e adolescentes entre 9 e
17 anos.
Vale
ressaltar que as mídias, diferentemente de outros vícios, são ferramentas
fantásticas para a aquisição de conhecimento, para a realização de tarefas
cotidianas e para certo tipo de interação social.
Tanto
pior, pois fica ainda mais difícil discriminar joio e trigo, quando as
vantagens são evidentes e inegáveis. Mas os riscos também o são e, se perdermos
mais tempo desbundados ou inibidos diante da revolução virtual é porque nos
omitimos da nossa responsabilidade de apresentar paulatinamente o mundo às
crianças.
Uso
restrito e mediado durante toda a infância, controle de conteúdo,
compartilhamento de experiências com os pais, regras de uso mantidas mesmo sob
protesto das crianças e aquisição de liberdade gradual são dicas apontadas por
especialistas, mas que pais, mães e educadores mais investidos não teriam
dificuldade de deduzir sozinhos.
Pais
se mostram inibidos por não dominarem as ferramentas e, ao mesmo tempo, por se
encontrarem tão ou mais abduzidos pelas novidades virtuais quanto os filhos.
É
muito difícil segurar a onda de uma criança quando ela vê que à sua volta
“todos os outros pais deixam” ou está “todo mundo usando”. Sinal de que falta
uma ação coletiva para enfrentar os riscos comprovados da virtualidade precoce
e desassistida.
Já
sabemos que as redes virtuais fazem muito mal, que seus inventores não deixam
os próprios filhos usarem, que as pesquisas apontam a necessidade de mediar e
restringir o uso. O que esperamos? Que todos os outros assumam seu papel, antes
de o assumirmos nós mesmos?
Se
cada pai/mãe fizesse o servicinho sujo que lhe cabe, de aguentar dizer não —e a
cara feia decorrente—, provavelmente sobrariam menos perrengues para quem
assume a árdua tarefa de educador.
Depois
de uma batalha campal para sustentar perante a filha menor de idade que ela não
poderia ir à balada de adultos, que “todas-as-minhas-amigas-vão-papai!”, meu
marido recebe um telefonema.
Pais
que deixaram os filhos irem —e se arrependeram diante dos riscos envolvidos—
ligam para perguntar como ele conseguiu aguentar a tromba da filha.
Resposta
sincera? Apesar de vocês.
Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar
na Maternidade” e "Como Criar Filhos no Século XXI". É doutora em
psicologia pela USP.
Fonte: coluna jornal FSP