Será
que devemos gastar dinheiro para financiar trabalhos que não podem ser
testados?
Será que físicos trabalhando em assuntos relacionados à
origem do universo estão perdidos em devaneios metafísicos que pouco têm a ver
com a realidade? Como lidar com a possibilidade de que todas as forças da
natureza sejam, na verdade, uma só?
Continuo hoje a conversa que tive com a física e autora
Sabine Hossenfelder, que acaba de publicar o livro "Perdidos em
Matemática: Como a Beleza Leva a Física na Direção Errada", nos EUA.
O livro oferece uma crítica ferrenha a essa linha
de pesquisa, especialmente porque certas hipóteses que estão sendo propostas
não podem ser verificadas por meio de experimentos. Isso vai contra
a física tradicional, na qual uma hipótese precisa ser testável para ser
aceita como útil na descrição de um fenômeno. Sem isso, como ter
confiança de que a hipótese descreve a natureza e não uma fantasia qualquer?
Semana passada, Sabine explicou porque tem interesse em
gravitação quântica e porque se preocupa com o que os físicos estão
fazendo nessa área. Eis a segunda parte de nossa conversa, que trata mais
especificamente sobre a intersecção entre física e filosofia.
A física e escritora Sabine Hossenfelder -
Existe uma divisão profunda na entre os físicos (ao
menos entre aqueles mais interessados ) com relação à incorporação de
hipóteses não testáveis para ajudar no avanço da pesquisa. Alguns acham essa
metodologia essencial, enquanto outros pensam que isso é um grande
erro. Por que essa cisão existe? Algo semelhante já aconteceu na
história da física? Essa crise tem solução?
Se uma hipótese não é testável, não é ciência. Não
entendo porque temos que perder tempo discutindo isso. Não sou uma historiadora
da ciência, mas não acredito que algo assim tenha ocorrido antes. Claro,
cientistas já acreditaram no que não podiam testar em uma dada época (por
exemplo, o elã vital como fonte de vida). Mas ao menos até
agora tínhamos um acordo de que se você começa a falar sobre crenças não testáveis,
você está praticando religião e não ciência.
Por que cientistas fazem isso? Porque podem. Porque
quanto mais baixo forem os padrões para aceitação de suas novas hipóteses,
mais fácil é produzir artigos.
Não sei se precisamos acabar com essa divisão. Mais
importante é clarificar onde está a linha divisória. Se pessoas querem passar
suas vidas inventando hipóteses que não podem ser testadas e medidas, o
problema é delas (se bem que acho essa opção um tanto estúpida). Só não quero
ver essas pessoas saindo por aí afirmando que estão fazendo ciência quando na
verdade não estão.
Costumo classificar o estado atual da física teórica
como uma guerra tribal. Como você sabe, também escrevi um livro sobre esse
tema, "Criação Imperfeita", no qual critico o uso do
conceito de beleza como princípio de verdade, caracterizando-o como perigoso. A
natureza não liga para as nossas noções estéticas. Você pode nos dar alguns
exemplos onde o uso desse tipo de estética na pesquisa causa confusão e erros?
Queremos saber o que é a matéria escura, se trata-se de
uma nova partícula e, se for o caso, qual é; ou, se não for, se precisamos
modificar a teoria que temos da gravidade (a teoria geral da relatividade
de Einstein).
A maioria absoluta das teorias propostas até agora
sugere novas partículas baseadas nesse ideal abstrato de beleza. Nenhuma dessas
partículas foi descoberta. Por outro lado, modificar a teoria da gravidade não
é uma alternativa considerada viável porque não é tida como bela. Por
isso, essas teorias têm recebido pouca atenção.
O importante aqui é que as teorias propostas pelos
físicos influenciam os experimentos que são elaborados. É por isso que décadas
de busca por partículas de matéria escura não produziram nada. Claro, isso não
significa que essa partícula não existe —talvez seja encontrada amanhã.
Mesmo assim, sabemos que essa partícula não é a que
seria esperada. Isso deveria fazer você se perguntar: se todas essas
expectativas e previsões até agora não produziram nada, por que devemos
acreditar nos que continuam insistindo que temos boa chance de encontrar essas
partículas num próximo experimento?
Esse é um exemplo. Outro é a teoria quântica da
gravidade, a teoria que falta para ligar o espaço e o tempo com a teoria
quântica. Até agora, as teorias são essencialmente baseadas em argumentos
matemáticos. Isso gerou várias alternativas, sem ligação com testes
experimentais. Eu acho absolutamente chocante que tanta energia tenha sido
gasta gerando teorias que, até uma década atrás, não tinham qualquer ligação
com testes experimentais.
Isso está mudando aos poucos, mas a maioria das bolsas
de pesquisa continua indo para essas especulações matemáticas, e não para
investigações que tentam testar a gravidade quântica experimentalmente.
Num mundo ideal, como você vê o futuro da pesquisa em
física de partículas e cosmologia?
Primeiro, devemos entender o que aconteceu. Sabemos que
a vasta maioria dos artigos publicados nessa área nas últimas décadas não têm
qualquer relação com a natureza. Mesmo que seja normal que a maioria das
especulações teóricas estejam erradas, o que não é normal é gastar tanto tempo
explorando detalhes de ideias prematuras.
Especificamente, gastamos uma quantidade enorme de tempo
e de dinheiro e, com isso, provavelmente deixamos de explorar caminhos mais
promissores. Essas áreas de pesquisa precisam de critérios mais eficientes para
o desenvolvimento de teorias; quais são eles é algo que os especialistas têm
que decidir.
Você tem esperança de que vai haver uma reconciliação?
Será que esse tipo de conflito acaba sendo produtivo?
Perdi a esperança de que esses grupos vão
voluntariamente mudar de ideia. Apenas a pressão do público (através de
mudanças no financiamento da pesquisa) pode mudar algo no que é considerado
popular ou produtivo.
Você atribui essa “miopia” ao grupo “perdido na
matemática” como sendo produto de um treinamento profissional baseado
exclusivamente em técnicas matemáticas, sem qualquer reflexão filosófica sobre
o contexto da pesquisa? Você acha que físicos devem aprender filosofia?
Diria que existe, sim, uma falta de introspecção, e que
isso é causado em parte pela pressão em publicar artigos. Você não
precisa ser um historiador ou filósofo para entender que noções de beleza não
são critérios confiáveis para a compreensão de fenômenos naturais. De vez
em quando, é importante dar uma parada e refletir se o que você está fazendo é
bom para a ciência, e não apenas para a sua lista de publicações.
Quanto à questão de físicos aprenderem ou não filosofia,
acho a divisão de trabalho entre as duas áreas importante e desnecessário que
físicos façam isso. Por outro lado, físicos que trabalham em áreas próximas da
filosofia deveriam buscar o conselho de filósofos, seja através de workshops ou
colaborações, ou mesmo indo tomar um café juntos.
A
questão de como cientistas devem prosseguir com o desenvolvimento de suas
teorias quando têm pouco ou nenhum dado experimental para guia-los precisa de
insights de filósofos. Infelizmente, os canais de comunicação entre
físicos e filósofos não estão funcionando muito bem no momento.
Marcelo
Gleiser - coluna discute temas sobre
física, filosofia e o impacto social e cultural da ciência.
Fonte:
jornal FSP