Terapia modifica células do paciente para combater o câncer


Terapia modifica células do paciente para combater o câncer

Tratamento experimental, testado no Brasil em 2019, tem resultado promissor.

Utilizada pela primeira vez no país em 2019, uma nova terapia modifica células do próprio paciente para combater o câncer. 

A abordagem inovadora pode se tornar uma alternativa para tratar doenças que atingem o sistema linfático, o sangue e a medula óssea.

Conhecida como terapia de células CAR-T, a técnica considera as características moleculares de cada tipo de câncer para desenhar uma resposta específica contra a doença.

As células T, que atuam na defesa do organismo, são retiradas do sangue e alteradas geneticamente para que se encaixem na superfície das partículas cancerosas e possam atacá-las. 

O material é multiplicado em laboratório e reinserido no paciente.

Para Vanderson Rocha, médico e professor titular na Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), a técnica é promissora, mas ainda é necessário muito investimento em pesquisa para entender riscos e benefícios

"As células modificadas vão combater a doença, então acontece uma guerra no organismo, que gera efeitos colaterais", explica o médico, que é também coordenador da unidade de doenças hematológicas na Rede D'Or São Luiz.

Entre as possíveis complicações está uma síndrome de liberação de citocinas, substâncias inflamatórias geradas pela morte de partículas tumorais.

Um consenso publicado pela Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular reforça a importância do preparo de equipes multiprofissionais para tratar possíveis efeitos adversos.


Segundo Rocha, a resposta ao tratamento é rápida: "Em dois ou três dias já é possível identificar se houve melhora".

A terapia foi desenvolvida nos Estados Unidos. Lá, estudos clínicos recebem pacientes locais e de outros países. 

Em março de 2021, a FDA (agência regulatória do país) aprovou o uso dessa tecnologia em pessoas com mieloma múltiplo, tipo de câncer que tem início na medula óssea.

Diagnosticado com linfoma não Hodgkin, doença que atinge o sistema linfático, o comerciante de Varginha (MG) Sérgio Eloy Gonçalves, 62, foi para Cleveland, em janeiro de 2020, como parte do estudo desenvolvido pelo University Hospitals Cleveland Medical Center.

Ele passou 32 dias internado e, após a aplicação da terapia, a melhora demorou cerca de uma semana. Sérgio começou o tratamento contra o câncer em 2012, fez quimioterapia e um transplante de medula óssea. 

No final de 2019, a doença voltou e passou a não responder às medicações disponíveis. Desde a participação no estudo norte-americano, o câncer de Sérgio está em remissão.

Emocionado, o paciente conta que já não tinha mais esperanças de melhora. "Quando a doença voltou foi muito agressiva. Eu já havia desistido, mas fui porque meus familiares insistiram."

Livre do câncer há dois anos, a relações públicas Sandra de Souza Silva, 54, também participou do estudo em Cleveland. Ela comemora o sucesso do tratamento com células CAR-T, feito em 2019. "Se não fosse isso, eu não estaria aqui."

Diagnosticada em 2017, ela também recorreu à terapia como uma última chance. "Contei com muito suporte da minha família, emocional e financeiro. Tive sorte, mas fico pensando na quantidade de pessoas que precisam e não podem arcar com os custos."

Além da internação, o paciente precisa custear as passagens, remédios e estadia para acompanhantes.

 Segundo o médico Vanderson Rocha, esse é um grande desafio para a popularização da terapia. "Quem vai para o exterior precisa gastar muito, às vezes abre vaquinha. Com o dinheiro de tratar uma pessoa lá fora, conseguiríamos atender dez aqui no Brasil."

De acordo com o especialista, o custo da terapia gira em torno de U$ 400 mil (aproximadamente R$ 2,2 milhões).

No Brasil, a técnica também é utilizada, por enquanto, apenas de forma experimental. "É preciso fazer estudos específicos para cada caso, estudar a resposta de cada tipo de câncer", afirma Eduardo Magalhães Rego, médico e pesquisador do Centro de Terapia Celular da USP (CTC-USP).

A técnica foi testada pela primeira vez no país em Ribeirão Preto (interior de São Paulo), em 2019, na Faculdade de Medicina da USP. O paciente foi Vamberto Luiz de Castro, na época com 62 anos, diagnosticado com linfoma não Hodgkin de células B.

A abordagem mostrou resultados promissores no paciente, que estava em estado terminal. No entanto, os médicos não conseguiram acompanhar o quadro de Vamberto a longo prazo. O aposentado morreu dois meses após o tratamento, em decorrência de um acidente doméstico.

Utilizar os recursos existentes no país para aplicação das células CAR-T foi um passo importante, explica Eduardo Rego, integrante do grupo de pesquisadores do CTC-USP.

Vamberto foi o único paciente tratado em Ribeirão Preto, isso porque o estudo foi prejudicado pela pandemia

Mas a pesquisa não parou, segundo Renato Cunha, coordenador da unidade de transplante de medula óssea e terapia celular do Hospital das Clínicas da USP Ribeirão Preto.

Para o médico, a próxima década é decisiva para o novo tratamento no país. "A pesquisa é a base, nós não paramos de trabalhar. Agora precisamos cuidar dos pacientes."

No caso de Vamberto, a terapia foi aprovada como uso compassivo, quando não há outra abordagem médica possível. 

O grupo de pesquisadores trabalha para viabilizar um estudo clínico, que, após passar pelos comitês de ética médica e pesquisa, poderá beneficiar mais pessoas.

O trabalho segue na USP de Ribeirão Preto, em parceria com o campus de medicina da capital paulista e também com o Instituto Butantan.

Cunha vê com otimismo a aplicação da terapia no país: "O Brasil tem condições de produzir seu tratamento e financiar parceiras público-privadas. 

O que aconteceu com as vacinas contra Covid-19 é um bom exemplo de investimento público em parceria com outras instituições".

Mas ressalva que, apesar de promissora, a tecnologia é nova e não deve ser vista como uma bala de prata. 

Por enquanto, o tratamento se aplica, principalmente, a casos de câncer que atingem o sistema linfático e o sangue.

Há pesquisas para a aplicação em tumores sólidos, porém os resultados iniciais não foram bons. O próximo passo é entender as falhas do uso da tecnologia nessas doenças.

CATARINA FERREIRA – jornalista Folha de São Paulo

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