Sequestro de crianças na
Nigéria não é questão somente religiosa, como quer Donald Trump
- Violência
extrema em escolas do país não se trata apenas de 'perseguição a
cristãos'; há raízes políticas e econômicas
- Entender
o que acontece no país como guerra religiosa seria ignorar as outras
dimensões do problema
Mais
de 300 estudantes e educadores foram sequestrados na última sexta-feira na St.
Mary’s School, uma escola católica na Nigéria. Homens armados invadiram o
colégio durante a manhã, levaram crianças e adultos para uma área de mata e
escaparam antes da chegada da polícia —neste domingo (23), surgiu a notícia de
que 50 estudantes conseguiram fugir.
A
recorrência desses ataques faz com que "rapto em massa" tenha se
tornado quase um termo técnico no noticiário nigeriano. A violação extrema de
direitos foi normalizada.
Embora a St. Mary’s seja católica, o governo
nigeriano insiste que grupos armados têm atacado também escolas islâmicas e
lideranças religiosas de diferentes tradições.
A leitura estritamente religiosa
de que há uma perseguição a cristãos no país africano, repetida por figuras
como Donald Trump, reduz conflitos complexos a um
antagonismo simplista entre cristãos e muçulmanos.
Pesquisadores locais apontam que a violência
tem atingido igualmente pessoas de distintas tradições e que, em muitos casos,
motivações religiosas funcionam apenas como superfície mais visível de disputas
por território, influência comunitária, rotas econômicas e recursos naturais.
O Boko Haram intensificou em 2014 os
ataques a escolas. Desde então, diferentes grupos, alguns ideológicos, outros
estritamente criminosos, têm replicado a tática.
O impacto imediato recai sobre
crianças, educadores e suas famílias, mas os efeitos desestruturam comunidades.
Aprendi em 2017, ao entrevistar a historiadora
ítalo-americana Silvia Federici, que a ação desses grupos tem
contribuído para processos de desterritorialização porque rompem vínculos entre
pessoas, terras e modos de vida comunitários que historicamente resistiram à
lógica de exploração.
O ataque a uma escola desmonta elementos
essenciais de estabilidade: o fluxo cotidiano de pessoas, a circulação de
conhecimento, as redes de cuidado, a autoridade local.
E quando crianças são
alvos diretos, a vulnerabilidade coletiva fica exposta.
A vida comunal descrita por Federici a partir
de suas pesquisas nos anos 1990, baseada na terra compartilhada, na confiança e
na reciprocidade, tem sido pressionada por uma economia política que opera a
partir da instabilidade.
A disputa real envolve o uso da terra e a capacidade,
ou impossibilidade, de permanecer nela.
O que se apresenta como conflito religioso ou
crise de segurança na Nigéria, portanto, é uma disputa prolongada sobre
território, sobre quem vive na relação direta com a terra –tantas vezes repleta
de minérios– e com quais condições de vida.
Os textos finais da COP30, apresentados um dia após os ataques,
incluíram pela primeira vez a categoria "afrodescendentes".
A
conquista importante dos movimentos negros evidencia como violência,
deslocamentos e clima se entrelaçam na disputa global por território.
Ao reconhecer que populações africanas e
afrodescendentes estão entre as mais expostas aos impactos da crise climática, a ONU admite em seus documentos que esses grupos são
também os primeiros afetados por degradação ambiental, conflitos por terra,
mineração e instabilidade política –processos estreitamente ligados, como vemos
também no Brasil.
BIANCA
SANTANA
- doutora em ciência da informação, mestra em
educação e jornalista. Autora de "Quando me Descobri Negra"