Virar o jogo contra o alcoolismo requer confiança
nas pessoas
Lidar com essa
doença silenciosa e sutil pede algo que não temos muito hoje em dia, que é a
convicção no ser humano.
Foi preciso confiar em algumas pessoas para virar o
jogo quase perdido do meu alcoolismo.
Lidar com essa doença
silenciosa e sutil requer algo que não temos muito hoje em dia, que é a
confiança no outro ser humano.
Um dos meus médicos, aquele que me deu suporte
quando eu tive um surto, me disse: "Alice, você precisa confiar em mim."
Porque à medida que me sentia jogada às margens do meu grupo social, sem
ninguém para conversar ou mesmo entender o que estava se passando, fui me
isolando ainda mais.
Falar da minha doença soa repetitivo, e é. Muitas
vezes em sala de AA ouvimos as mesmas histórias, muitos clichês...
Mais de uma
vez uma amiga me alertou ao ler meus textos, antes de serem publicados:
"Tem muito lugar-comum!". Mas é isso mesmo: as situações e as
sensações se repetem...
Teimosa que sou, demorei a abrir a mente e aceitar
sugestões, conselhos e tratamento. Na falta de um diagnóstico preciso, é
necessário ter muita confiança no médico, e ouvir muito a mesma coisa.
É a
típica situação de água mole em pedra dura... Ela acaba furando a pedra. Esse
milagre é uma conjunção de muitas coisas: confiança no profissional, escuta
atenta por parte dele e os tombos que vão ficando cada vez piores.
Tem uma hora
que chega! (outro clichê). Se você frequenta uma sala de AA, sabe das mensagens
que colocamos em letras garrafais.
Eu sempre ouvi que bebia demais. Eu mesma, no fundo,
também sabia que tinha alguma coisa errada no modo como eu bebia, mas daí até
zerar de vez o consumo era demais…
Ai de alguém que me sugerisse para deixar a
bebida… Eu reagia ferozmente, achava que a pessoa queria tirar algo precioso de
mim.
Não suportava a ideia de abdicar de uma coisa que tinha me proporcionado
uma vida possível (e tão ruim, hoje sei, mas na época eu não conseguia me dar
conta).
Nessa minha fidelidade ao álcool, desconfiava de
todo mundo que me olhasse torto quando eu entrava no quarto ou quinto copo.
Ou
se era recriminada ao flertar com uma bebida pela manhã (primeiro nas manhãs de
sábado, depois de qualquer dia da semana).
Fosse quem fosse, se viesse se meter
entre mim e o álcool, eu detonava e/ou limava da minha lista de convívio. Salvo
se fosse da família, aí não tinha jeito.
O álcool me tirou a capacidade de acreditar, de
sonhar e sobretudo de confiar nas pessoas. Achava, por exemplo, que minha prima
queria meu mal quando sugeria que talvez a solução fosse optar por programas
alternativos, sem bebida.
Eu ficava com raiva, com ódio, e me afastava. Perdia
a cumplicidade e a confiança. Agia do mesmo jeito como tratava os médicos: ia
embora e trocava de profissional quando meu problema com álcool virava uma
questão.
A confiança que depositei no dr. E. me propiciou
uma virada de chave. Ele sempre foi muito educado, gentil e solidário, mas ao
mesmo tempo firme na sua posição quanto ao álcool.
Se eu começava a discutir,
ele parava e me ouvia, e não dizia mais nada. Aquele silêncio foi me
incomodando, foi me incentivando a pensar.
Ele sempre estava ali para mim, me
atendia de uma forma espetacular, mas não me omitia verdades. Ele me explicava,
como que para uma criança, o que o álcool fazia comigo. Às vezes me irritava
muito.
Mas quando eu o afrontava, ele simplesmente me ouvia com um sorriso
calmo e um semblante tranquilizador.
No fundo é isso, a confiança com ele se deu porque
ele nunca falou mal do álcool, ele simplesmente foi me mostrando, aos poucos,
que a substância não me fazia bem.
Me
apontava novos caminhos e, o mais importante, me levava a sério. Nunca esqueço
de quando passei a morar com minha irmã e comecei a dar trabalho. Ela ligou
para ele, que a atendeu mas alegou que estava com outra paciente. E pediu que
ela me dissesse, enfática, que na hora da ligação ele estava com uma pessoa que
tentava suicídio.
O choque da realidade e a importância que ele dava para o meu
caso foi tornando nossa relação muito boa e efetiva ao tentar quebrar a
barreira inexpugnável que eu construía com a bebida.
Hoje não bebo nada de álcool já há alguns
anos, tento ser honesta comigo e com os outros
(mentir me machuca porque me lembra o período da ativa).
Com esse cenário mais
transparente, começo a observar os outros e tento identificar pessoas que falam
a mesma língua que eu, que podem não só humanizar minha doença como me considerar.
Sou alcoólatra e trabalho, tenho amigos, tenho uma vida. Tudo isso porque
estou em recuperação.
E mais uma vez cito aqui a minha editora da Folha de
S.Paulo: Obrigada, Mariana, por ter sempre me acolhido muito bem. A confiança
em você tornou possível esse blog.
E pelo que recebo de mensagens, sei que ele
está ajudando algumas pessoas a elucidar esse caos que é o alcoolismo.
ALICE S. – coluna jornal FSP