Mundo em chamas assiste a tudo bestializado
Omissão das
pessoas decentes abre campo para destruição da ciência e do ambiente
A tentação do desespero é forte, mas não
irresistível.
Mesmo com más notícias vindo de toda parte, nunca foi tão urgente
seguir regando o jardim, mesmo que não falte gente sempre disposta a fechar a
torneira da decência, como Donald Trump.
Desavisados que veem no boquirroto um paladino da
liberdade de expressão, agora secundado pelo trio Riqueza Dura (Musk,
Zuckerberg, Bezos), encontrarão alguma justificativa para elogiar suas ordens executivas silenciando os Institutos Nacionais de Saúde (NIH).
Mas cabe denunciá-las pelo que são: censura.
A Casa Branca mandou cancelar de imediato todos os
seminários, reuniões de comitês, viagens e solicitações de fundos para
participação em congressos e conferências nos vários institutos, que têm juntos
orçamento de US$ 48,6 bilhões.
Alguns encontros foram cancelados minutos antes
de começar.
Trump ordenou ainda a interrupção de todas as
comunicações no Departamento de Saúde, onde instalou o antivacina Robert
Kennedy Jr. Fica de imediato suspensa a publicação de regulamentos, diretivas,
anúncios de fomento, comunicados de imprensa e até notas em redes sociais.
Não seria surpresa se viesse também um cala-boca em
outros setores com bilhões para financiar a pesquisa sobre mudanças climáticas,
que Trump sequer mencionou no discurso inaugural: Departamento de Energia (US$
51 bi), Nasa (US$
25 bi), EPA (US$ 11 bi).
O prejuízo não alcançaria só a pesquisa
norte-americana, no médio e longo prazo. Um exemplo: imagens de satélites como
o Landsat, da Nasa, são empregadas pelo MapBiomas, coletivo de pesquisadores
brasileiros, para gerar mapas e relatórios de uso da terra no país.
Por falar em MapBiomas, veio de seu Monitor de Fogo outra péssima notícia do "annus
horribilis" de 2024: queimadas e
incêndios varreram 308 mil km2do território nacional,
superfície maior do que a Itália. Um aumento de 79% sobre o total incinerado em
2023.
Três quartos da área queimada continham vegetação
nativa, não pastagens ou campos cultivados. O bioma mais afetado foi a amazônia,
que respondeu por 58% da superfície engolida nos incêndios.
"O ano de 2024 destacou-se como um período
atípico e alarmante do fogo no Brasil, com um aumento expressivo na área
queimada em quase todos os biomas, afetando especialmente as áreas florestais,
que normalmente não são tão atingidas", diz Ane Alencar, coordenadora do
MapBiomas Fogo.
O ano passado foi também o mais quente já
registrado na Terra, sob a influência de um El Niño, que por sua vez é
potencializado pelo aquecimento global.
Desbancou 2023, sendo que todos os dez
recordistas ocorreram na presente década, desde 2015.
A estiagem sem precedentes na floresta amazônica
—produto da crise do clima, assim como os ventos secos e quentes das montanhas
Santa Ana que desceram sobre Los Angeles—
favoreceu as chamas em lugares que não costumam queimar.
Ninguém está a salvo
de fogo e fumaça.
Assistimos a tudo "bestializados, atônitos,
surpresos, sem conhecer o que significa", como disse do povo o jornalista
Aristides Lobo, em 1889, na proclamação da República.
135 anos depois, ainda
nos desesperamos por notícias boas como a indicação de
um ótimo e decente
filme nacional ao Oscar, mas não dá para negligenciar a rega do
jardim.
MARCELO LEITE -jornalista de ciência e ambiente, autor de
“Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)