Que mulheres mais velhas tenham aposentado o desejo é um engodo
Um novo aplicativo tem causado furor ao envelhecer a imagem do usuário a partir de uma foto atual. Ele também nos projeta com outro gênero ou nos estilos "Barbie e Ken". Confesso que o mais gostoso de me ver mais velha foi o alívio de voltar para a foto original. Ufa! estou ótima, perto de como ficarei. Mas também dá para curtir a ideia de que poderei reconhecer meus traços, ainda que a mão do tempo tenha amassado ainda mais meu rosto.
As reações dos jovens ao se verem nesses imagens variam de "não consigo me imaginar velho" até "fazendo Botox/plástica não ficarei assim". Basicamente, negamos e ponto.
Na velhice a miragem está no passado e não no futuro. De repente, paramos de sair bem nas fotos, mas demoramos a admitir que se trata de nós e não da luz ou do fotógrafo.
Envelhecimento é algo que acontece com os outros. Há pouco, vendo minha mãe inusualmente cansada, perguntei-lhe se sentia triste, ao que ela respondeu que estava "ficando" velha. Nada mal para quem tem 92 anos.
Lembremos de Freud quando se deparou com um homem velho e mal encarado, o que o deixou exasperado. Em seguida percebeu, assombrado, que vira sua própria imagem refletida no vidro. A ideia do "estranho familiar" é central na psicanálise e fala daquilo que não reconhecemos em nós mesmos, embora conheçamos visceralmente.
A velhice nos confronta com o medo de adoecer, de depender dos outros e com a certeza da morte. Mas para além desses fatos, existe o engodo de confundir limitações físicas com infantilização. Minha mãe me contou indignada a cena de sua incursão recente em um grupo de atividade física para idosos, no qual o coordenador propôs que se dessem as mãos para entoar um "ciranda-cirandinha". Ela esbravejou: "Meu caro, tive seis filhos, não dá para voltar a ser criança!" Saiu batendo a porta e não voltou mais.
Atendendo senhoras nessa faixa etária vemos como é difícil que se assumam e sejam reconhecidas como sujeitos com histórias de vida interessantes, eróticas e politizadas, enquanto seus corpos perdem a potência habitual. Contribuem com essa imagem, muitas vezes por se resignarem durante a criação de filhos e netos. Confundem a discrição de sua vida pessoal, amorosa e sexual —que não precisa ser escancarada para os outros— com a extinção dessa vida.
A jovem mulher exuberante dá lugar a uma figura de mãe recatada e do lar, perdendo a chance de revelar aos filhos que por trás de mães existem mulheres.
A sexualidade dos pais incomoda o filho inexperiente que ainda não se sente seguro da sua própria. Cabe a sensibilidade e o decoro de pais e filhos para que não se intimidem ou entre em disputas, pois se trata de manter cada um no seu quadrado. Mas daí a vestir a carapuça de abstinente e condenado ao tédio é demais. A personagem de Sonia Braga em "Aquarius" (2016) dá uma lavada na alma das mulheres mais velhas ao bancar seu desejo e independência diante das investidas da filha para que abdique de sua vida.
As atuais vovozinhas —entre 70 e 80 anos— foram as jovens dos anos 70 e 60. Anos que deram origem à liberação de costumes, à nova onda feminista, ao amor livre, às drogas alucinógenas. Pensar nessas mulheres como aposentadas do desejo é de uma miopia grotesca.
A mulher que abre mão do desejo em nome da maternidade expõe as filhas ao mesmo dilema, deixando-lhes a opção de terem que abrir mão da própria maternidade para continuarem a ter uma vida. Vida longa às vovozinhas assanhadas, suas filhas e netas.
Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.
Fonte: coluna jornal FSP