As ideologias da inteligência artificial
Convicções da área
permitem justificar concentração econômica em níveis inimagináveis.
Se você acha que a disputa ideológica atual
exagerada, prepare-se. No campo da inteligência artificial há várias
ideologias em conflito.
Elas ajudam a explicar a demissão e o retorno de Sam Altman à Open AI, empresa criadora
do ChatGPT.
São ideologias tecnocêntricas com
consequências para todos nós.
O nome do seu aglomerado é: Tescreal (pronuncia-se
tésque-real). O acrônimo refere-se a: transumanismo, extropianismo,
singularitarianismo, cosmismo, racionalismo, efetivo altruísmo e longo
prazismo.
O termo foi criado por Émile Torres e Timnit Gebru, esta última,
cientista especializada em ética para inteligência artificial que trabalhou
para o Google mas foi demitida.
Você pode dizer: nunca ouvi falar de nada disso. No
entanto, essas ideologias capturaram um segmento importante da população do
planeta: os bilionários.
Nesse circuito, têm exercido grande influência, como
exemplifica a demissão e a recontratação de Sam Altman.
Vale falar rapidamente de cada uma. O transumanismo
quer redesenhar os humanos usando a tecnologia, criando pessoas superiores (os
"pós-humanos").
Isso incluiria inteligência aumentada, controle de
emoções e até imortalidade (por meio de digitalização da consciência).
Extropianismo, singularitarianismo e cosmismo têm
pontos em comum. O primeiro quer que a tecnologia seja usada para padronizar os
valores humanos por meio de uma convergência tecnológica.
O segundo quer criar
uma forma de inteligência externa que seja muito maior que a nossa (momento
conhecido como "singularidade").
Já o cosmismo prega que "humanos fundam-se
com a tecnologia", levando a mente a habitar mundos virtuais que permitam
"realizar as promessas das religiões e outras que nenhuma religião sequer
sonhou".
O racionalismo por sua vez leva a um utilitarismo
radical.
Quer que a tecnologia suprima as deficiências morais humanas fazendo
cálculos absolutos e universais.
Ele aceita que alguém seja "torturado por
50 anos para que milhões de pessoas não tenham de lidar com o desconforto de
ter um cisco no olho".
Já o altruísmo efetivo (EA) prega que a melhor
forma de alguém fazer o bem é enriquecer sem limites e então usar seu dinheiro
para materializar sua ideia de bondade.
Um dos seus adeptos mais famosos é Sam
Bankman-Fried, condenado a cem anos de prisão por fraude envolvendo
criptomoedas.
Por fim o longoprazismo prescreve que a humanidade
se multiplique pelos planetas, levando à existência de trilhões de humanos no
longo prazo. Para que isso aconteça, é aceitável fazer sacrifícios no presente.
Algumas dessas visões entendem que a inteligência
artificial é uma ameaça aos seus objetivos.
Outras acham o contrário, que ela é
essencial. Elon Musk e Altman, por exemplo, estão em
campos opostos nessas visões, apesar de ambos participarem do Tescreal.
Removendo o verniz teórico, essas são ideologias do
dinheiro. Permitem justificar concentração econômica em níveis inimagináveis,
externalidades negativas ou desigualdades crescentes em nome de miragens como
"conquistar as galáxias".
São também ideologias ocidentais. Respondem ao fato
de o Ocidente estar perdendo protagonismo para o Oriente. Seu espalhafato
consegue chamar a atenção de volta, sobretudo para os EUA.
Comentei com o filósofo Yuk Hui sobre essas
ideologias e ele disse: "Infelizmente, agora vivemos nesse tipo de ficção
messiânica.
É como a afirmação feita pelo Grande Inquisidor no livro 'Os Irmãos
Karamazov' de que é satã que nos salvará".
RONALDO
LEMOS -
advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro.