Velho despreparo dos EUA pode levar a nova pandemia
Emergência
sanitária em escala mundial com gripe aviária ainda não é inevitável, mas vai
se tornando possibilidade
Em três horas e
meia de sabatina no Senado, nesta quarta (29), só uma pergunta
feita a Robert F.
Kennedy Jr. mencionou a gripe da cepa H5N1, que passou a
avançar rapidamente entre animais e já contaminou 60 humanos nos EUA —com uma
morte confirmada na Louisiana.
Kennedy Jr., o militante antivacina indicado
por Donald Trump para
comandar o maior complexo de agências de saúde do
planeta, deixou mais do que claro seu despreparo nas respostas aos senadores que o
bombardearam com exemplos de teorias conspiratórias espalhadas por ele há anos.
Apenas cinco anos depois da explosão da
pandemia mais devastadora em um século, desafia a credulidade
perceber o despreparo da infraestrutura pública americana para enfrentar a nova
ameaça, um ano depois da primeira
descoberta de contaminação em gado nos EUA.
As vacinas existentes estão defasadas, e um sistema
nacional eficiente de testes em animais ainda não foi implementado.
Casos de
reinfecção detectados recentemente em animais sugerem maior chance de mutação
da cepa em curso, o que aumenta o risco de uma pandemia.
A decisão de Trump de retirar o
país da Organização Mundial de Saúde e a suspensão de ajuda externa
afetando o tratamento de Aids para milhões, especialmente na África,
somadas a uma possível confirmação de Kennedy Jr., podem contribuir para a
formação de uma tempestade perfeita de saúde pública que não seria restrita a
fronteiras americanas.
Isoladas da OMS, autoridades
médicas americanas perdem acesso a informação crucial sobre surtos epidêmicos
emergentes. Isso impacta, por exemplo, a capacidade de produção anual de
vacinas atualizadas para surtos sazonais de gripe.
Como quem amargou uma
passagem por uma sala de emergência lotada na véspera do Ano-Novo, testemunhei
a severidade do surto de influenza neste inverno do hemisfério Norte, no qual
um exame confirmou que contraí a cepa H3N2.
Não há nenhum grupo de interesse que se
beneficie do divórcio da OMS, uma decisão vingativa tomada pelo
presidente que
acusou a organização de acomodar a China no começo da pandemia de Covid, em 2020.
Pelo
contrário, duas ditaduras adversárias dos EUA, notórias por combater a
transparência, como a China e a Rússia, devem adquirir maior influência em políticas globais
de saúde.
A decisão é má notícia para a poderosa indústria farmacêutica
americana nesta Presidência tão privatizada. As empresas do setor mantêm cerca
de 1.800 lobistas bem remunerados em Washington e gastam centenas de milhões de
dólares para comprar a lealdade de políticos.
Agora, sua habilidade de produzir
drogas para enfrentar desafios de saúde globais será afetada.
A saída dos EUA afeta a saúde em toda parte, já que
o país contribui com 12% do orçamento de US$ 6,8 bilhões da OMS.
O diretor-geral
da organização já comunicou a todos os funcionários que
contratos existentes serão renegociados e outras medidas de contenção de gastos
estão a caminho, dizendo que as missões de apoio técnico a países membros serão
reduzidas ao mínimo essencial.
Para um populista que se elegeu numa plataforma
isolacionista e de ações punitivas no comércio internacional, Donald Trump
ameaça exportar o que outros países não tinham a menor intenção de importar.
LÚCIA GUIMARÃES - jornalista e vive em Nova York desde 1985.
Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista
dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.