O cérebro autorreferente e autossuficiente


Novo coronavírus criou a versão pandêmica das câmaras de privação sensorial.

Na década de 1970, as câmaras de privação sensorial viraram moda. 

Começou como experimento: o que aconteceria com nossa atividade mental na ausência de estímulos sensoriais? 

Se o cérebro é uma máquina de responder a acontecimentos, então a experiência da ausência deles deveria ser o mais próximo que o ser humano consegue chegar à vivencia do Nada, do Silêncio Interior, e, supostamente, da Calma.

A versão Mundana, do século passado, é uma sala anecoica toda branca, ou preta, com quase nada ao alcance dos olhos e das mãos. 

A versão Chique, das boutiques de isolamento do século 21, tem tanques com aquecimento para igualar a temperatura da pele (entra-se peladão, claro), sais de bicarbonato para tornar a água mais densa e permitir flutuação fácil, tampa anti-ruído e oclinhos tapa-olhos.

Agora, temos ao alcance de todos a versão Pandemia: isolamento em casa, sem estímulos sociais, sem variedade de cenários, sem problemas externos banais por resolver.

 Os estímulos sensoriais existem, mas, na forma do zumbido constante da Netflix ligada o dia todo, são facilmente ignoráveis. 

Então: o que acontece com o cérebro durante o isolamento?

Ele se auto-entretem. Essa foi a grande lição das câmaras de privação sensorial: isolado de acontecimentos externos, em questão de minutos o cérebro começa a se divertir sozinho, com sons, imagens e todo tipo de experiências criadas por ele mesmo. 

Não que ele não já tivesse vida interior própria, pois tinha —ela só era abafada, uma marolinha no mar de eventos sensoriais da vida cotidiana. Quando o mar se acalma, ficam as marolas internas.

E que marolas: são elas que nos dão unidade e individualidade. 

A autossuficiência cerebral, que também é autorreferencial, só começou a ser desvendada quando o neurocientista Marcus Raichle, da Universidade Washington, em Saint Louis, resolveu ousar, uns 20 anos atrás, e se perguntou como era a atividade do cérebro de seus voluntários não enquanto resolviam problemas ou faziam tarefas no tubo da ressonância magnética, mas enquanto faziam... “nada”.

Resposta, muita pesquisa e muitos pesquisadores depois: assim como o cérebro tem circuitos que geram ações e monitoram seus resultados sensoriais, ou mudam nosso foco de atenção, ou nos impedem de dizer besteira rápido demais, há um circuito que serve de âncora pessoal, que amarra junto tudo o que diz respeito a Você. 

Onde está, de onde veio, a que veio, para onde vai. 

É o sistema autorreferencial, que nos permite pensamentos livres, ciência do nosso próprio estado e ciência dos próprios pensamentos.

Ele sempre esteve lá. Às vezes é preciso uma sala de isolamento —ou uma pandemia— para nos darmos conta de que temos, sim, vida interior.

Suzana Herculano-Houzel - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Fonte: coluna jornal FSP

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