Para não morrer de engasgo


O aparentemente simples ato de engolir é, na verdade, uma sequência complexa de movimentos

É maravilhoso ter um cérebro que cuida das coisas básicas no modo automático sem precisar ficar se supervisionando. Engolir, por exemplo, é um ato tão corriqueiro e bem azeitado quando somos adultos que até parece simples --mas na verdade constitui cerca de 600 possibilidades frustradas de morte por dia. 

O córtex cerebral é quem ganha a fama pelos movimentos complexos, mas no caso da deglutição, boa parte da honra é do tronco cerebral, que tem todos os circuitos necessários. 

O córtex cerebral possui tantos neurônios na nossa espécie que acaba supervisionando e interferindo em todo o resto que o cérebro faz, sim; prova disso é que acidentes vasculares do cérebro podem causar dificuldades de mastigação e deglutição.


Mas o grosso do trabalho é feito por vários pequenos núcleos no tronco cerebral, difíceis de identificar e, portanto, de estudar. Por sorte, nossos problemas são semelhantes aos de mamíferos de laboratório. 
Porquinhos, como nós, também precisam aprender a mastigar e engolir sem cuspir ou engasgar, e como humanos, os prematuros têm dificuldade para sugar e engolir leite. 

Seja apenas saliva ou volumes maiores de líquidos ou sólidos colocados na boca, cada deglutição é uma oportunidade para engasgo ou aspiração, se o que está na boca descer pelo tubo errado. E não, nós humanos não somos os únicos a ter o privilégio de arriscar morte por asfixia a cada deglutição. 

Apenas temos uma probabilidade maior de engasgar enquanto comemos, parte por causa da laringe vertical e baixa, parte por causa da nossa insistência em mover ar no sentido oposto, de baixo para cima, para produzir sons pela garganta o dia todo --inclusive enquanto mastigamos. Falar de boca cheia não é só horrível, é uma tentativa involuntária de suicídio por asfixia.

Tudo isso porque o "simples" ato de engolir é na verdade uma sequência complexa de movimentos de abrir a boca, fechar a boca e contrair os lábios (ou a comida é cuspida de volta, como fazem bebês em aprendizado), mastigar (de preferência sem morder a língua ou o interior da boca), produzir saliva (sem a qual engolir não é possível), interromper a respiração e fechar a glote (muito importante!), e somente então usar vários músculos ao mesmo tempo, na ordem certa e no momento certo, para empurrar o bolo alimentar para a garganta. Que bom que a gente aprende a comer antes de aprender a falar...

 

Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)

Fonte: http://www.suzanaherculanohouzel.com


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