Nos
últimos dias, tem-se falado muito dos 50 anos do golpe militar. Dia desses,
depois de ouvir no rádio um programa sobre o assunto, mudei a sintonia e dei
com o início de uma obra-prima, "Cálice", de Gilberto Gil e Chico
Buarque. Lembrei-me do dia em que Chico Buarque e o sempre querido MPB-4
tentaram cantar essa música no Anhembi, em São Paulo, durante a Phono-73.
Eu estava lá e presenciei a cena: um a um, os microfones do
palco foram levados a Chico pelo MPB-4. Mal Chico entoava o primeiro verso de
"Cálice", o microfone era desligado. Um a um, todos foram desligados,
e Chico resignou-se: "Vamos ao que pode, vamos ao que pode".
"Cálice" não podia. Muita coisa não podia. Quase fui
expulso do colégio porque afixei no mural uma matéria do "JT" sobre a
poluição em Cubatão. Não se podia falar de problemas. Não havia problemas no
país. Nenhum. Quem citasse algum era "subversivo",
"comunista", "antipatriota" e outras cretinices.
Na pungente "Cálice", há passagens cuja compreensão
demanda conhecimento linguístico e, sobretudo, do mundo em que a letra foi
gerada, como em "De muito gorda a porca já não anda / De muito usada a faca
já não corta". Com a figuração que há nesses versos, com ênfase para o
valor causal das expressões "de muito gorda" e "de muito
usada" (a porca não anda mais porque está muito gorda; a faca não corta
mais porque está muito usada), os autores representam o esgotamento dos
procedimentos da ditadura e também da capacidade deles de suportá-los.
Há também fortes versos literais, que dispensam explicação
("Tanta mentira, tanta força bruta").
Merecem destaque dois versos preciosos, que retratam a fina
análise que os autores fazem do tempo em que produziram o texto: "Quero
inventar o meu próprio pecado / Quero morrer do meu próprio veneno". Para
os que não viveram aquele momento e para os que o viveram e não o entenderam ou
fingem que não o entenderam: havia "pecados", alguns deles (quase
todos) capitais, definidos como tal pelos "donos da verdade". Quem
cometia um desses "pecados" (refiro-me especificamente aos de matiz
ideológico) era torturado, condenado ao exílio etc. Mesmo quem não fazia nada
de nada pagava pelo "pecado". Bastava uma "autoridade" não
"simpatizar" com alguém ou um vizinho pura e simplesmente dizer que
Fulano era "comunista" para que...
Os versos "Quero inventar o meu próprio pecado" e
"Quero morrer do meu próprio veneno" soavam como um retumbante grito
contra as "verdades" dos ditadores e traduziam o sentimento de quem
não aceitava o estúpido código do pensamento incontestável, imposto pela
ditadura. Chico já falara disso nos versos da primorosa "Apesar de
Você": "Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventar / O
perdão".
A nauseabunda ditadura militar terminou, mas continuamos
mergulhados em outra(s) ditadura(s), com a devida complacência e/ou
participação do poder público da nossa "democracia". Os versos de
Chico e Gil parecem vivos, visto que no Brasil de hoje não me parece possível
dizer que temos o direito de inventar os nossos próprios "pecados" ou
de morrer do nosso próprio veneno. O código que define o que é
"certo" continua sendo o de grupelhos (governantes corruptos,
incompetentes, policiais corruptos, violentos, bandidos de todos os tipos,
assaltantes, assassinos, traficantes etc., etc., etc.). Os "pecados"
que cometemos são os que ferem o "código" deles. O veneno de que
morremos também é o deles. É isso.
Pasquale Cipro Neto - professor de Língua
Portuguesa, escritor, colunista do jornal Folha de São Paulo.
Fonte: jornal Folha
de São Paulo