Doença de Wilson: 'A enfermidade rara que
transformou meu cérebro de 30 anos em um de 70'.
Carolina
diz que percebeu que perderia a autonomia logo após o diagnóstico, quando sua
mãe teve que ajudá-la a escovar os dentes, porque ela não conseguia.
A passagem do tempo costuma ser evidente em
nosso corpo quando aparecem rugas e cabelos grisalhos, também quando os
músculos vão definhando e os dentes escurecem.
O que acontece com nosso
cérebro, por outro lado, geralmente é menos perceptível.
A jornalista colombiana Carolina Roatta enfrenta um
problema diferente: uma doença rara que afeta seu cérebro,
envelhecendo-o, mesmo que seu corpo seja jovem.
Ela conta que estava em uma fase ótima da vida
quando a doença começou a se manifestar.
"Eu tinha 32 anos e me sentia a rainha do
mundo. Era novembro de 2012.
Eu tinha terminado minha tese de mestrado e estava
novamente solteira. Eu estava ensinando em uma universidade e tinha acabado de
conseguir meu emprego dos sonhos como jornalista", diz Carolina.
"No dia em que fui assinar o contrato de
trabalho, cheguei tão segura de mim que consegui controlar o tremor que tinha nas mãos há algum tempo.
Essa assinatura foi a última coisa que consegui escrever."
O DIAGNÓSTICO
Carolina conta que os tremores começaram a ficar
cada vez mais fortes, primeiro nas mãos e nos braços e depois na cabeça e nas
pernas.
"Mudei minha rotina. Parei de usar blusas de
botão e sapatos de amarrar, passei a usar jeans skinny e até contratei uma
assistente para escrever para mim.
Também comecei um diário em áudio para
registrar tudo o que acontecia comigo", diz ela. "Resisti o melhor
que pude, mas depois de seis meses a situação tornou-se insustentável."
Carolina passou por várias consultas médicas que
duraram 15 minutos.
"No sistema de saúde colombiano, é
preciso passar por um clínico geral para que ele possa solicitar
exames ou encaminhar o paciente para um especialista.
Fui
atendida por um neurologista de primeira viagem que me diagnosticou
erroneamente com tremor essencial e me receitou medicação para essa condição.
Aquele remédio me relaxou, mas não tirou o tremor."
Depois de consultar diversos médicos, psicólogos e
neurologistas, foi um médico de medicina alternativa que pediu um exame de
imagens do seu cérebro.
"Meu pai e minha mãe me acompanharam à ressonância magnética. No dia seguinte,
enquanto aguardávamos os resultados, o técnico ligou perguntando se eu
manuseava produtos químicos no meu trabalho.
As imagens mostraram que meu
cérebro estava intoxicado."
Sua família então ajudou Carolina a conseguir uma
consulta particular com um neurologista renomado.
"Não foi barato, mas pela primeira vez senti
que alguém entendia o que estava acontecendo."
"A consulta durou três horas, o médico fez
vários exames clínicos: eu tinha que tocar a ponta do nariz com o dedo
indicador, desenhar uma espiral, fazer fantoches com as mãos, ficar em apenas
um pé.
Em todos tinha dificuldades e acabei suando como se tivesse corrido uma
maratona", conta a jornalista.
Graças à consulta e outros exames, o neurologista
confirmou que Carolina tem a doença de Wilson, uma doença hereditária.
"É uma esquisitice genética com o nome do
neurologista que a descobriu, Samuel Alexander Kinnear Wilson. Ela impede que
meu corpo seja capaz de processar ou digerir cobre."
O cobre é um elemento que nos ajuda a ter nervos e
ossos saudáveis, também contribui para o colágeno e a melanina na pele.
O corpo
humano não o produz, mas o adquire através de muitos alimentos, como lentilhas,
amêndoas, chocolate, abacate, lagosta, entre outros.
O corpo decompõe esses alimentos, o fígado processa
o cobre que usamos e o organismo elimina o que não precisa, geralmente pela
urina.
"O problema é que quem sofre de Wilson, tem um
fígado incapaz de processar e eliminar o cobre.
O metal então se acumula no
corpo, em quantidades que o tornam tóxico", explica ela.
"Normalmente, o fígado é o mais afetado, seguido pelo cérebro, olhos e
rins."
Carolina conta que seu caso é "ainda mais
estranho".
"Apesar de 32 anos acumulando cobre, meu
fígado estava saudável. Meu cérebro, por outro lado, envelheceu duas vezes
mais. O neurologista disse que parecia o de um homem de 70 anos", conta
ela.
DOENÇA CRÔNICA
Para tratar a doença, a jornalista precisa tomar um
remédio para o resto da vida.
"O remédio "descasca" o cobre que se
acumula nos órgãos e depois o elimina pelo sangue e pela urina", conta
ela.
O médico explicou que ela levaria um tempo até
melhorar, sem especificar se seriam meses ou anos.
Também deu o conselho de que
ela não pesquisasse sobre a doença na Internet para não se assustar e
especificou que os sintomas iriam piorar subitamente durante o início do tratamento.
"Passei a acreditar que seria breve e que em
pouco tempo retomaria minhas atividades. A realidade é que no meu dia a dia eu
parecia uma espécie de 'bebê'.
Passei de uma mulher super autônoma para
depender dos outros em todos os aspectos da minha vida."
Carolina diz que percebeu que perderia a autonomia
logo após o diagnóstico, quando sua mãe teve que ajudá-la a escovar os dentes porque
ela não conseguia.
"Lembro-me perfeitamente de meus olhos se
encherem de lágrimas quando abri a boca e ela cuidadosamente começou a limpar
com a escova. Chorei porque senti que não tinha mais dignidade", conta.
"Era assim que eu me sentia toda vez que
precisava da ajuda dela: ela me limpava quando eu urinava, tomava banho, me
ajudava a trocar o absorvente quando estava menstruada, me vestia."
Depois de quase um ano, Carolina atingiu o limite
de deficiências médicas permitidas. Não
apresentou melhora e conseguiu se aposentar por invalidez.
"A princípio me pareceu atraente: ter 32 anos,
um salário vitalício e poder dedicar tempo aos meus hobbies.
Mas tinha outro
lado: ser tão jovem e se sentir inútil, descartada para o mundo do trabalho,
rebaixada e condenada a ganhar um salário mínimo na Colômbia", diz ela.
O valor da aposentadoria fazia com que ela
continuasse a depender dos outros financeiramente.
O PRIVILÉGIO
"Eu estava longe de imaginar que Roatta, meu
sobrenome, me salvaria. Minha família paterna é francesa e graças a essa
herança, recebi dupla nacionalidade, pude estudar em uma escola bilíngue e falo
o idioma", conta Carolina.
"É por isso que a França começou a soar como uma opção
quando entendemos que na Colômbia não havia nada que pudéssemos fazer a não ser
esperar e ficar dependente, sem muita esperança", conta ela.
Uma de suas irmãs já morava na França e,
pesquisando, encontrou um centro de referência para a doença de Wilson que fica
em Paris.
"Meus pais, minha irmã mais nova e eu
decidimos emigrar para se juntar a ela. Foi uma decisão difícil, mas
necessária", conta Carolina.
O local, CRMR Wilson, tem uma equipe de
especialistas que deu à jornalista todas as respostas. Como Wilson é uma doença
genética, eles conseguiram diagnosticar também as duas irmãs de Carolina antes
do aparecimento do sintomas.
"Nós três temos consultas de acompanhamento,
incluindo exames, a cada seis meses. Também temos acesso privilegiado a
medicamentos e recebo ajuda financeira para compensar minha deficiência",
conta ela.
Desde que chegou ao país, no final de 2014,
Carolina vem tentando criar uma nova vida para si, e conseguiu alguns
progressos.
"Agora tremo muito menos, o anel em volta dos
olhos desapareceu e voltei a ser totalmente autônoma", comemora.
"Foram oito anos no processo de aceitação da
minha diferença: doente, estranha, meio colombiana, desempregada e agora com 40
anos. Díficil.
Tentei vários projetos de trabalho, mas nenhum progresso. Tentei
vários relacionamentos e a vida como casal, mas também não deram certo."
Carolina diz que ainda está "em modo de
construção". Está fazendo um novo mestrado (já que nunca conseguiu
defender sua dissertação na Colômbia), tem um novo amor, trocou o projeto de
ter filhos pelo de ter gatos e se mudou para uma cidade perto do mar.
"Paris é muito difícil de viver quando você
está vulnerável", explica ela, que entende o quão privilegiada é a sua
trajetória em comparação com outras pessoas que sofrem da doença e dependem da
saúde pública.
"O desfecho da minha história é uma
raridade.
Ter diagnóstico, tratamento e acompanhamento está
longe de ser a norma para quem está em países da América Latina. Na Colômbia
tive sorte: a doença de Wilson aparece na lista de doenças raras do Ministério
da Proteção Social, graças aos esforços da Federação Colombiana de Doenças
Raras (Fecoer)", conta ela.
Um dos medicamentos é também coberto pelo sistema
público de saúde na Colômbia.
"O problema, neste caso, é que as pessoas
sejam diagnosticadas a tempo, por isso é difícil obter estatísticas sobre o
número de casos, embora desde 2020 tenha havido progressos graças a uma equipe
da Universidade de Antioquia", diz ela.
A DOENÇA DE WILSON NO BRASIL
No Brasil, há desde 2018 um novo protocolo para atendimento de pacientes com
a doença de Wilson no SUS (Sistema Único de Saúde).
O protocolo estabelece que 4 tipos de fármacos que
podem ser usados no tratamento da doença devem estar disponíveis aos pacientes
pela rede pública.
O uso deve ser indicado pelo médico levando em conta os riscos
e benefícios do tratamento.
Embora
exames como ressonância magnética e tomografia costumem ter grandes filas para
realização pelo SUS, o diagnóstico também pode ser feito com exames clínicos
(feitos pelo próprio médico) e laboratoriais (como exames de sangue e urina).
Caso
a pessoa esteja incapacitada para o trabalho por causa da doença, ela pode ter
direito ao afastamento previdenciário ou até mesmo aposentadoria, a depender do
caso.
É preciso pedir o benefício e aguardar a resposta do INSS.
ATIVISMO
Carolina
diz que, se ela não tivesse como consultar um especialista que conhecesse a
doença, é muito provável que ela já tivesse morrido sua minha família ainda
estivesse procurando respostas.
"Eu
tenho consciência do meu privilégio e tenho o meu lado ativista, então desde
que cheguei na França eu me ofereci como voluntária na associação de pacientes
de Wilson e agora sou o presidente", conta Carolina, que diz que é a rede
de apoio que a mantém em movimento.
É no
projeto que ela pode continuar comunicando, criando vínculos, ajudando,
capacitando pacientes e suas famílias.
"Também
milito para que em outras partes do mundo, inclusive na América Latina, seja
possível o diagnóstico rápido, o acesso ao tratamento e o acompanhamento de
qualidade", diz ela.
Por
um tempo, Carolina também gerenciou um grupo no Facebook para se conectar com
pacientes que falam espanhol.
"Houve
muita interação, inclusive várias pessoas entraram em contato comigo na minha
conta pessoal, uma de Cuba, uma associação da Costa Rica, outra paciente do
Chile, uma da Argentina, duas da Colômbia" conta ela.
Segundo
a jornalista, todas as histórias eram de dificuldade no acesso a medicamentos ou
de uma longa espera por um transplante de fígado - a solução extrema nos piores
casos de Wilson.
"Três
desses pacientes morreram enquanto estávamos em contato", conta Carolina.
"A experiência que mais me marcou foi uma mulher do Peru.
Seu marido teve
a doença e faleceu no início da pandemia. Por vários meses eles não tiveram
acesso à droga e ele morreu enquanto esperava por um transplante."
"Acompanhei-a
via messenger por três dias enquanto o marido morria, com a tristeza de saber
que os finais felizes dos pacientes com Wilson são mais raros do que a própria
doença."